Quadrilha Literária

quinta-feira, 24 de junho de 2010

"Somos a melhor das artes!!"

Era dia de Rock Português na Voz do Operário, e a partir das dez a sala enche-se: muita cerveja, casacos de cabedal, correntes, camisolas pretas de grandes bandas… Muito fumo! Era um ambiente altamente underground, sala pequena, só fãs do estilo, nada de pitas e singles comerciais, todos sabiam as letras, mosh verdadeiramente saudável e libertador. Começam-se a sentir os primeiros acordes e a pequena (grande) multidão começa-se a chegar à frente e a acabar o copo. Cartaz: Fabrica dos Brinquedos, Mata Ratos, KDO 3, Peste e Sida, Tara Perdida, Censurados (?). Hora prevista de encerramento: 6h00.

A noite foi passando: muitos copos no ar, encontrões, abraços, refrões cantados em coro, muito Rock! Ia a noite quase a meio e os Tara Perdida iam mandando a casa abaixo. Toda a gente a cantar, a atirar-se do palco, aos empurrões, excepto um tipo de uns 30 anos junto à mesa de som. Quem olhasse para ele julgaria ver droga e álcool. Mas ele que via os seus próprios olhos sabia que aquilo que lhe entrava no corpo era bem diferente de qualquer estupefaciente, era a música que o fazia transcender e o levava onde ele nunca tinha ido, era cada distorção alternada, cada solo, cada slap, cada break, cada palavra…

Essa noite ele olhava para o palco, para os músicos, para a equipa técnica da banda e imaginava aquilo que considerava ser o verdadeiro fundamento da música, o grande diálogo da harmonia musical:

(Baixo) – Eu sou sempre menosprezado pelo público. Ninguém compreende a necessidade do meu uso. Uns dizem que não me ouvem, outros que eu estar ou não estar é indiferente…

(Guitarra) – O que tens tu a menos, tenho eu a mais. Toda a gente olha para mim e diz que sem os meus agudos a música seria uma valente merda. É por isso que muitos compositores têm uma atenção especial quando pensam no meu grande momento, o solo.

(Bateria) – Pois é, tu tens o protagonismo todo. É de cultura. Há culturas em que a o protagonismo musical é dado sobretudo à percussão e eu sou a grande modernidade da precursão. Mas porque razão é que eu tenho que ficar sempre na parte de trás do palco?

(Baixo) – Tu estás mais atrás mas quem realmente está sempre atrás sou eu. Ninguém olha para mim excepto quando tenho um momento de brilho em Jam. E mesmo assim ainda dizem que slaps e quebras de tempo são coisas básicas. Se não fosse eu a música não tinha corpo…

(Bateria) – Sem dúvida, mas olha que o meu bombo também é uma excelente muleta para ti. Nós conjugamo-nos muito bem, tu dás o corpo e a tonalidade base e eu o ritmo e o compasso.

(Guitarra) – E eu preencho os espaços que vocês deixam soltos, daí ter mais cordas e mais variedades de tonalidade. Tanto posso preencher os espaços em ritmo como aproveitar o desequilíbrio da melodia e brilhar.

(Bateria) – Normalmente tens uma guitarra de apoio.

(Baixo) – No fundo todos temos o nosso papel, e sem cada um de nós a estrutura não funciona.

(Guitarra) – Os Doors não tinham baixista…

(Baixo) – Tinham piano que completava os graves, mas se queres falar em grandes bandas…

(Piano) – Estava a ver que não citavam o mais completo dos instrumentos !!

(Guitarra) – Lá vem este com a mania das superioridades. (risos)

(Saxofone) – Eu gostava de saber qual de vocês é que entra no coração do público como eu entro quando tenho uma oportunidade...

(Baixo) – No nosso estilo – não clássico -, há pouco espaço para ti, isso é uma verdade.

(Pandeireta) – E os meus ritmos agudos? Quantos vocalistas não pegam em mim enquanto não cantam?

(Guitarra) – A verdade é quando nos juntamos todos: tenham cuidado !!

(Baixo) – Somos a melhor das artes!!

(Guitarra) – Somos pois, ainda está para nascer uma arte tão importante e tão
tocante para as pessoas como aquela que juntos fazemos…

(Baixo) – Juntos, porque só assim faz sentido...!

sexta-feira, 11 de junho de 2010

"Olha fica na tua que eu fico na minha!"

O jantar tinha corrido razoavelmente bem. Bom vinho, comida bem apurada, e conversas que não foram para além do que é mais ou menos unânime. O pior foi depois do jantar. Sentados, nos dois sofás da sala, tinham acabado de ligar a RTP N: “Assembleia da República aprova o plano de austeridade”. Bebiam café, ao lado tinham dois copos de whisky, ambos com duas pedras:

- É sempre a mesma merda, nós é que nos lixamos sempre! É uma vergonha! São todos uns ladrões a aproveitarem-se de nós!, exalta-se Rui numa espécie de monólogo.
- Temos que fazer sacrifícios Rui…

- Não me venhas com as tuas teorias João. De que o país anda mal e que esta porra é inevitável. Já não engulo essa há muito tempo!
- Não me venhas tu com tretas. Tu és o típico Português que só reclama e reclama mas que não faz nada. Isto é um esforço patriótico. Não há alternativa.

- Não há alternativa? Então mas que culpa é que eu tenho que durante anos a classe política tenha deixado o País chegar a este ponto? Que culpa é que eu tenho que o país esteja neste caos?
- Temos todos. Temos todos responsabilidades, e por isso mesmo temos todos de fazer um esforço colectivo para dar um rumo ao país.

- Qual esforço colectivo, qual quê!! Esses corruptos, gestores, milionários estão sempre bem, para eles nunca há crise, quem se fode é sempre o povo, quem trabalha!
- Pronto, lá vêm os teus tiques comunistas. Deixa-te desses chavões Rui, isso já acabou. E esses gestores e milionários dão um contributo imenso para a economia. Se quiseres metemos os patrões todos no Campo Pequeno e metemos lá uma bomba, como queriam alguns no PREC, depois vamos ver quem é que dá emprego em Portugal!!

- O problema é que essa cangalhada toda pode fazer o que lhe apetece porque tem sempre as costas quentes com esse pseudo contributo para a economia. Mas que contributo é que esses burgueses dão ao país? Salários de miséria, precariedade, desemprego, exploração, desigualdades. Não têm responsabilidade nenhuma…
- Pronto tudo bem, então implementamos legislação toda pró social para ajudar os pobrezinhos e depois é ver os investidores fugir. És mesmo um burro utópico.

- E tu um burro conivente com a exploração dos outros.
- Não é exploração é desenvolvimento económico!
- Mas tu já olhas-te para o Mundo? Isto está roto por todo o lado, o sistema está completamente podre e estes PEC´S 1 e 2, mais a merda do plano de austeridade, só servem para nos meterem a mão no bolso e taparem os buracos que criam, ao taparem os buracos que esses porcos capitalistas criaram.

- És mesmo um comunista ignorante!!!!
- És mesmo um capitalista merdoso!!!!!!

- Olha fica na tua que eu fico na minha !
- Luisa, vamos embora!!!!!!!!

quinta-feira, 10 de junho de 2010

Verdade dolorosa

Voltava a casa depois de mais um dia difícil no hospital. Vivia sozinho, divorciou-se há quase quatro anos e estava bem assim. Tinha um filho adolescente que de quinze em quinze dias o vinha visitar. O trabalho era tudo para ele, sentia-se realizado e não tinha objectivos concretos de formar família, já o tinha feito e não se tinha saído muito bem.

O despertador tocou às 07:45h e interrompeu-lhe o sono. Esfregou os olhos e espreguiçou-se. Foi directo à cozinha, barrou manteiga num pão e bebeu um copo de leite frio em três goladas. Tomou um duche rápido, vestiu o fato que a empregada tinha engomado no dia anterior e pôs uma gravata azul listada de amarelo. Os sapatos engraxados brilhavam à luz do sol. Antes de sair passou pelo escritório e recolheu a pasta de couro, dando um jeito na fivela mal encaixada.
Eram 09:02h quando chegou ao hospital. Passou pela recepção e com um aceno cumprimentou a Dona Teresa, que de óculos no nariz retribuiu com um sorriso dócil. No gabinete estava já à sua espera um garoto negro com ar cansado e abatido e a sua mãe, cabisbaixa e inquieta. Chegou perto do miúdo e perguntou: “Como te chamas?”- respondeu num tom de voz fraco: “Miguel”.

-“E que te dói, Miguel?”

-“A cabeça. Dói muito.”

Miguel tinha 6 anos e a mãe deu o resto das informações ao médico. Disse que hà uns tempos que ele se queixava de dores de cabeça, não eram muito fortes mas constantes. Mostrou-se também preocupado porque a criança tinha alguma sensibilidade à luz. Perante este panorama, o termo aneurisma foi inundando o pensamento do Dr. Pedro. Recostou-se na cadeira e tomou uns apontamentos numa folha branca onde estavam os dados de Miguel.

Mandou fazer uns exames para ter a certeza. Não queria por nada deste mundo que o seu diagnóstico estivesse correcto. Era só uma criança indefesa, ainda sem maldade com tanta vida pela frente. Sim, era um aneurisma, de primeiro grau. Tinha oitenta por cento de hipótese de sobreviver. Não era médico há muitos anos, nunca tinha passado por situação semelhante. Num flashback inoportuno, viu a imagem de um dos professores da Faculdade de Medicina explicar que um aneurisma cerebral era basicamente um vaso sanguíneo anormalmente dilatado no cérebro que se rompesse provocaria danos ao nível da respiração, originando morte por paragem respiratória.

Não ia ser fácil dizer à mãe o que podia acontecer. Chorou durante minutos, estava desesperada e implorou-lhe que lhe salvasse o filho.
Uma semana depois, Miguel entrou para a sala de operações com a mesma expressão no rosto. Adormeceu vítima da anestesia e momentos depois foi a vez de o médico entrar. Não tinha dormido nada, aliás, não passava uma noite em condições desde o dia em que tinha visto o garoto. Era a sua quinta operação e nenhuma das anteriores exigia metade do cuidado desta. Lavou as mãos e os braços, estava pronto, pelo menos aparentava estar. Era uma intervenção de risco, uma craniotomia. O objectivo era colocar em redor do vaso sanguíneo uma espécie de clipe de titânio a fim de evitar que o aneurisma rompa. A enfermeira esterilizou todo o equipamento e a operação teve inicio. Começaram por fazer um corte no crânio, abrindo-o cautelosamente. As pingas de suor escorriam-lhe pela testa e a voz inquietante da mãe a pedir que lhe salvasse o filho, era aterradora. Percebeu que não estava preparado, mas não podia voltar atrás. Tinha que tomar as rédeas e ser ele o comandante do navio. Pegou nas pinças, a firmeza praticamente inexistente. Recuou, baixou os braços, olhou para os colegas e disse:

“Porra, eu não consigo fazer isto. Não consigo.” – Quem estava do seu lado esquerdo, pôs-lhe a mão no ombro, aproximou-se e respondeu: “Só tu podes fazer isto, tens que ser tu! Vais conseguir, o miúdo vai sair daqui bem.”

Avançou de novo. A pressão apoderou-se de todos os seus músculos, não ia ser capaz. Aplicou o primeiro clipe com sucesso, mas curiosamente não se sentiu confiante. Ao segundo, as mãos tremiam muito, tinha a sensação que aquela operação estava destinada a ser um fracasso. Então, a pinça rasgou o aneurisma. Com compressas toda a gente tentou parar a hemorragia, era tarde de mais. O coração do pequeno Miguel não resistiu. Nem mesmo a força da juventude foi mais forte do que o problema. Perplexo, olhou o relógio da sala. Hora do óbito: 17:36h.

Saiu apressado, passou pela mãe que esperava ansiosa por notícias e com um sorriso falso disse que voltaria para falar com ela. Tirou a bata, deu um pontapé na secretária e um soco na parede. A mão ferida sangrava, mas o sangue que ele via era o de Miguel, não estava minimamente preocupado com a mão, não lhe doía, nem sequer a sentia. Perdeu o seu segundo paciente, para ele era o primeiro. O outro, era um velho que não conseguiu curar de um cancro. Dessa vez não pesou tanto. Como se ver alguém morrer-lhe nos braços não fosse suficiente, faltava ainda dizer à mãe que tinha perdido o seu bem mais precioso.

Aproximou-se, pegou-lhe na mão e disse: “Custa muito dizer-lhe isto. O Miguel estava com uma hemorragia interna quando veio cá da primeira vez, provavelmente caiu na escola, bateu com a cabeça e aconteceu. Os sintomas levavam a crer que seria um aneurisma, mas no decorrer da operação e assim que iniciámos a craniotomia tornou-se claro que não era de um aneurisma que se tratava, era uma hemorragia interna que poderia ter sido tratada se tivesse vindo mais cedo.” Cada palavra que cuspia queimava-lhe a língua. A cada frase concluída, uma facada atingia-o no coração. Era culpado da morte da criança, mas só ele e quem estava naquela sala, sabia disso. A imagem do hospital não podia ser manchada, a dele muito menos.

A mulher debruçou-se sobre o corpo vazio do filho e chorou.

quarta-feira, 9 de junho de 2010

O Soalho

À sua frente, à espera de inspiração. Não lhe virava as costas, embora algo dentro de si lhe sussurrasse um Desiste. Uma tela sentada num cavalete, pacientemente à espera de inspiração. Branca, sem cor, ainda que lá as tenha todas, sobrepostas, mas reflectidas e, portanto, ausentes. Um homem que procura as cores e não encontra, ainda. O amigo que passa, na rua lá em baixo – vê-o pela janela e acena-lhe – e ele com o pincel sem cor, de volta ao quadro. O chão em madeira antiga, coberto de pó. As fendas deixam passar a luz e até mais. O homem ajoelha-se, pesado da idade, levando os olhos pequenos às frinchas, aproximando-se o mais que pode, espreitando o andar inferior. Vê os pratos na mesa, prontos para o almoço. 

Passado um pouco, as pessoas à mesa. Vistas de cima são bolas pretas ou loiras, conforme o cabelo, e as mãozinhas rápidas com os garfos e as facas, como as formigas com o que apanham do chão. Com esforço, o homem puxa a tela para si, decidido a retratar aquilo que para ele é tão real no momento, mais do que o amigo que passa na rua a acenar. Teme fazer notar-se com tanta agitação. As cores não precisam de ser muitas, desde que as use bem, Bastam três, pensa. 

Enquanto se prepara para finalmente começar, ouve o rádio baixinho anunciar um eclipse solar total para esse dia, fenómeno observável durante a tarde naquele ponto do globo que gira, gira, gira. 

Na verdade, naquela família algo de invulgar fazia brilhar o olho ao artista. Tal colava-o ainda mais ao soalho. As crianças barulhentas, os pais severos, impondo respeito. As pinceladas fortes e rápidas, ao ritmo da música descarrilada que os pratos emanam. O homem num estrabismo desmedido, com um olho no andar de baixo e outro na tela. A certa altura faz uma pausa e constata que as crianças saem, com aquela pressa que só elas têm, umas atrás das outras, livres da mesa. Ouve atentamente a conversa, afinal não são os pais, mas que interessa? O quadro é dele. Continua a retocar com alguma cor o barulho que as crianças faziam com o talher, esforçando a memória, puxando pelas texturas e pelas formas de modo que o que fique seja o que ele quiser que seja visto e não necessariamente o que ele observa. 

E o tempo passa aqui e passa nas órbitas lá de cima, que não são excepção pois a lua anda e o Sol também e depois a luz cruza-se e parece que pára mesmo em frente ao Sol e o cumprimenta com um Olá como estás?. E nisto não se vê nada cá em baixo, no globo que gira, gira, gira. 

O homem incomodado por não ver levanta-se, senta a tela no cavalete, senta-se ele também no banco pequeno e quase que não há luz ali, não há brancos: há escuros e negros. Fita o quadro com severidade, rindo-se depois com o caricato daquele impasse. Está farto de saber. Há dois séculos que o sabe. É sempre preciso estragar um pouco o quadro para o poder terminar. 
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Fuso horário

I think I should speak now
I can't seem to speak now
My words won't come out right
I feel like I'm drowning
I'm feeling weak now
But I can't show my weakness
I sometimes wonder
Where do we go from here

FADE IN:
INT.DIA
No terminal de aeroporto de uma grande cidade (Nova Iorque, Londres, Tóquio, Paris, Viena, Milão, Rio de Janeiro, Madrid, Moscovo, Buenos Aires, Los Angeles, Pequim, Chicago, Lisboa); vozes que anunciam as chegadas; centenas de pessoas, sentadas, com malas, com sacos de compras, funcionários do aeroporto, das companhias aéreas, passageiros.
GRANDE PLANO SOBRE A MULTIDÃO NO TERMINAL. ZOOM IN. UM HOMEM QUE ACABA DE CHEGAR À CIDADE TOCA NO OMBRO DE OUTRO QUE ESTÁ À SUA ESPERA NO AEROPORTO.
- Já estás há muito tempo à espera?
- Há pouco mais de uma hora.
- O voo atrasou-se à saída.
- Correu tudo bem?
- Sim. Foi tranquilo. Dormi umas boas horas, o que não costuma acontecer.
- Queres que leve uma?
- Não é preciso. Não as trago muito pesadas.
- Por aqui.
- Deixei lá muita tralha. Tudo o que já não preciso.
- Deixei o carro deste lado.
- Em que hotel ficaste?
- Não fiquei. Fiz a viagem de noite.
- Ansioso demais para dormir?
- Quase... (ri-se) para evitar o trânsito.
- Deves estar cansado...
- Um pouco, mas já tomei uns quatro cafés.
- Em uma hora? (ri-se) Deixa ver a chave que eu levo o carro.
ENTRAM NO CARRO. INTERIOR DO CARRO.
- Mete a pasta aí atrás.
- Então...
- O quê?
- Diz lá...
- O que é que queres saber?
- Disseste há bocado que não dormias tão bem há anos...
O OUTRO RI-SE. O CARRO ESTÁ A ENTRAR NA AUTO-ESTRADA.
- Não tem nada a ver com isto. Não dormia assim em aviões, era o que queria dizer.
- Talvez inconscientemente...
- Não me parece.
O OUTRO OLHA PARA ELE À ESPERA DE UMA RESPOSTA.
- Não há nada que saber. Foi tudo como eu estava à espera.
- E o que fizeste quando soubeste?
O QUE ESTÁ A CONDUZIR FECHA OS OLHOS E ACELERA.
- Fiz o que tinha de fazer...
- Só uma pergunta... agora que já sabes o que aconteceu...
- O quê? Fazia o quê?
- Preferias não ter ido?
O HOMEM QUE ESTÁ A CONDUZIR OLHA PELA JANELA E FICA EM SILÊNCIO POR UM MOMENTO.
- Não consigo pensar dessa maneira. Se não soubesse, nada disto teria acontecido. Continuava a viver da mesma maneira.
- E isso seria melhor ou pior?
- Eu sei que tu queres que eu diga que sim, que seria melhor mas... mas estaria a viver uma ilusão.
- Então? Preferias?
- Não me arrependo. Se estivesses no meu lugar, não farias o mesmo?
FICAM EM SILÊNCIO DURANTE ALGUNS MINUTOS. O QUE ESTÁ NO LUGAR DO MORTO BOCEJA.
- E agora? O que vais fazer?
- Não sei.
- Vai mudar alguma coisa?
- Talvez. Agora, pelo menos, não tenho desculpas para não tentar.
- O quê?
- Ainda não sei.
- Qualquer coisa, podes contar comigo. Comigo e com os outros.
- Ninguém me pode ajudar agora. Pelo menos, por enquanto. Só o tempo.
- E o que vai acontecer depois? Quando esqueceres o que se passou?
- Não sei. Ainda não sei. Porquê tantas perguntas? Tens medo que eu faça alguma coisa?
- Claro que não, mas é normal uma pessoa sentir-se culpada depois do que aconteceu. É difícil lidar com isso. Muitos não conseguem.
- Podes ficar descansado. Agora tenho mais motivos para não ter essas ideias. Podes dizer aos outros para não se preocuparem comigo. Não precisam de me tratar de maneira diferente.
- Há qualquer coisa que mudou. Eu vejo nos teus olhos.
- É claro que mudou. Eu mudei. Para te ser sincero, rezei durante muito tempo para que alguma coisa acontecesse. Nunca soube bem o quê. Agora vejo que isto pode bem servir.
- Servir? Do que estás a falar?
- Para mudar alguma coisa. Isto pode mesmo ter o seu lado bom. Pode indicar-me algum caminho. Não dá para explicar. Estive muito tempo à espera que alguma coisa mudasse, para que eu pudesse também mudar. Seguir um caminho diferente. Sei lá. É claro que não te consigo dizer o que vai acontecer a seguir. Não depende só de mim. Mas eu vou fazer tudo o que estiver ao meu alcance para não me deixar levar. Eu tenho quarenta anos, caraças, não me vou deixar apagar pela idade. É a altura certa para me impor. Imagina que agora tínhamos um acidente e eu ia parar ao hospital, e conhecia a pessoa certa para mim e éramos felizes para sempre. Não podes dizer que é impossível. Ninguém sabe o que vai acontecer, não achas?
O HOMEM QUE ESTÁ A CONDUZIR OLHA PARA O OUTRO E, AO VER QUE JÁ ESTÁ A DORMIR, RI-SE.
- Sortudo. Temos uma longa viagem pela frente. Não te preocupes. Vai ficar tudo bem. É hora de virar a página. Começar de novo. Ninguém sabe o que pode acontecer agora.
FADE OUT.
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quinta-feira, 3 de junho de 2010

Abby

A casa respirava imponência. A porta branca abria-se e por trás dela, um hall quadrado dava as boas vindas a quem entrasse. Do lado direito, escadas em caracol até ao andar superior, corrimão em veludo encarnado. Enquanto se percorria o corredor, era inevitável reparar nas paredes repletas de quadros caros e de uns quantos candelabros. Na quarta porta à esquerda, sentado confortavelmente numa poltrona e de livro no colo, repousava o senhor da casa. Ao fundo, encostadas à parede de cal entre dez a quinze mulheres exibiam o seu corpo em lingerie. Algumas não disfarçavam o nervosismo de quem estava ali por diferentes razões, com diferentes objectivos.

Aquelas que se sentiam mais à vontade aproveitavam para provocar o senhor, piscando o olho de forma tentadora ou mordiscando o lábio. O Homem casou-se já quatro vezes mas não tinha herdeiros. Em conversas informais confessava que sentia que tinha nascido para aquilo, para singrar no complexo mundo da prostituição. Persuade raparigas de Leste, impingindo-lhes mentiras e promessas que nunca são cumpridas.

De volta à sala. Uma hora e vinte depois de terem entrado, mandou os seus seguranças acompanharem as mulheres à saída. Em fila, uma a uma saíam. Saíam todas menos a mulata que o tinha deixado curioso. Levantou-se, andou em círculo deixando-a indefesa no centro.
Disse: “Despe-te!”- ela sorriu matreira e desceu primeiro a alça esquerda do soutien, depois a segunda. Tirou-o e o homem admirou durante alguns segundos os seus mamilos. Levemente foi aproximando-se dele, passou a mão pelo corpo prestes a entrar em erupção e deixou-o em êxtase total. Então o Homem agarrou-a e tentou possuí-la. Preparado para lhe arrancar a parte de baixo da roupa interior, tocou o rabo da mulata que depressa se apressou a agarrar-lhe a mão e sussurrou-lhe ao ouvido: “Calma Charles, calma…”- empurrou-a e perguntou: “Como sabes tu o meu nome?”- sorriu da mesma forma de há momentos atrás e afirmou: “Conheço-te bem melhor do que és capaz de imaginar, querido. Nem sabes o quanto me esforcei para chegar aqui, para finalmente poder estar na tua presença. Achas mesmo que me ia envolver com um porco como tu se não tivesse um bom motivo?”- Charles começou a suar. Não estava a gostar de ouvir o que a mulata dizia. “Diz-me o teu nome, preta.”

“Abby Wayne. Tenho o mesmo apelido da mulher que violaste há mais de vinte anos. Que espancaste depois com medo que ela contasse a alguém. Essa mulher foi a mesma que me criou, que me aconchegava os lençóis antes de adormecer, que me beijava a testa todos os dias de manhã.” – Relembrou aquele momento, quando Margareth trabalhava para ele e numa noite fria em que tinha bebido a mais, a agarrou e a violou. Caiu em si e percebeu que tinha que a matar, não podia correr riscos. Tirou da gaveta uma Walter e com dois tiros, eliminou o perigo.

“Tenta compreender, eu errei mas ninguém podia saber de nada”- disse. Abby tirou da mala uma chave de fendas e saltou sobre ele. Prendeu-lhe o pescoço, cruzando as pernas e enquanto Charles se debatia e tentava libertar-se desferiu no pescoço gordo dele três golpes. Os braços deixaram de a tentar atingir. Deixou-o no chão, viu-o contorcer-se de dores e viu a sua alma abandonar o corpo dolorosamente. Não nega que sentiu um certo gozo. Tinha vingado a morte da sua mãe e nada, nem mesmo a consciência, a iam fazer sentir-se mal. Recolheu a arma do crime, e foi embora.

Diário do Norte de luto

26 de Agosto

Uma mulher de 25 anos foi encontrada morta nos arredores do Porto. De identidade ainda não divulgada, o “Diário do Norte” sabe, por intermédio da GNR, que o corpo foi cortado em três partes tenho a vitima sofrido de abuso sexual antes da morte. (Luís, Diário do Norte)
26 de Agosto
Em situação idêntica à morte do dia 26 de Agosto, Joana Aguiar, 26 anos, foi encontrada morta num armazém abandonado às portas de Lisboa, com o corpo dividido em três partes. Foi vítima de abuso sexual antes da morte. Fica por esclarecer algum tipo de ligação com o homicídio do mês passado. (Luís, Diário do Norte)

26 de Setembro

Outra vez no dia 26, outra vez uma mulher violada e cortada em três partes. Desta vez de Braga, Manuela Abrantes, 28 anos foi encontrada num terreno baldio. A PJ está a analisar as parecenças entre os três crimes. (Luís, Diário do Norte)

26 de Outubro

É oficial, com a morte de mais uma jovem, Ana Silva de 26 anos, no seu apartamento em Viana do Castelo, abusada sexualmente e dividida em três, a PJ declara que está a decorrer uma intensa operação de “caça” ao possível assassino das quatro jovens. Todas dia 26. Todas entre os 25 e os 29 anos. Todas a tirar mestrado em Bioquímica. Todas naturais do Porto. Mais informações na próxima edição. (Luís, Diário do Norte)

… Foi com estas noticias que o país mergulhou numa intensa discussão pública sobre o Serial Killer do dia 26. Com efeito, a PJ do Porto já havia montado a caça ao homem e em todas as edições o jornalista “Luís” do Diário do Norte trazia informações e detalhes sobre o caso. Para Manuel Madeiro, chefe da investigação, a situação era exigente:

“A Polícia Judiciária, em colaboração com as demais entidades, colocou os seus mais experientes quadros na investigação. Depois de quatro brutais mortes, a PJ tudo fará para que nem mais uma mulher seja morta no dia 26 e esperamos nos próximos dias encontrar e prender o responsável por tão bárbaros actos”
Após a radia e sucinta conferência de imprensa, Mário e os outros inspectores reúnem-se:
- A situação é séria e exige muito de nós. Temos neste momento quatro pistas que nos levam a três suspeitos fortes. Tiago, tu és responsável pelo professor. João, tu pelo empresário. E tu Pedro pelo velho. Ao trabalho…!

Suspeitos:

Um professor da UP e antigo professor das quatro jovens conhecido pelo seu tique para com estudantes mais novas e pelos fracassos matrimoniais. Um lenço e uma caneta estão na origem das suspeitas.
Um empresário, gerente da empresa onde as quatro jovens foram pedir emprego. Um porta chaves está na origem da suspeita.
O velho é um homem dos seus quarenta, mas com ar muito gasto. Todas as jovens faziam referências ou em Diários, ou em emails ou em conversas, às suas tentativas de abordagem sexual.

…….

Sem saber como nem porque a edição de 15 de Novembro do Jornal do Norte revelava a existência de três suspeitos. E nas edições de 16, 17, 18, 19 e 20 revelou muitos mais pormenores do caso: a folha de papel com poesia; a cruz riscada dos braços; As semelhanças profissionais entre elas; O batom; A posição como o assassino colocava o corpo. A PJ interrogava-se sem seria o bufo da investigação… O Diário do Norte esgotara as vendas nessas edições perante a inércia em que a PJ se encontrava. Faltavam quatro dias e nenhuma prova era evidentemente consistente para prender quem quer que fosse.

No dia 26, Manuel Madeiro passa a noite na PJ, não tinha conseguido cumprir a sua responsabilidade… A não ser que a direcção da investigação estivesse errada. Um maço fumou, e um maço de evidências encontrou. Às 7h30 saiu da sede da PJ com dois companheiros para a sede do Diário do Norte. Precisavam de encontrar o jornalista “Luís” urgentemente, algo não batia certo. Quando entraram no Jornal deram de caras com as primeiras impressões da edição do dia:

“Diário do Norte de luto”

Afonso Nave, conceituado jornalista, que escrevia como “Luís”, que divulgou todos os pormenores do caso do Serial Killer do dia 26 suicidou-se esta madrugada em Braga deixando uma carta de agradecimento e despedida. A carta está dividida em três partes. Na primeira agradece aos leitores das suas notícias. Na segunda despede-se da sua alegria de viver, o jornalismo criminal. Na terceira pede desculpa pelos danos colaterais e os efeitos secundários das suas noticias…

Crónica de uma liberdade

Os corredores são estes onde estou, com paredes caiadas a branco. Por aqui passamos eu e o tempo. A luz dos dias que entra, a falta dela à noite, quando eu, paciente número 2039, penso que não durmo. Por estes corredores, números sentados ou a andar, para trás e para diante, cada um consigo próprio, vazio mesmo assim. Talvez caminhem a par com o eco que os chinelos produzem. Talvez nem lutem contra o tempo. Os que já desistiram sentaram-se e aí ficam até que voltem para o buraco. 

No pequeno varandim que rodeia o edifício sinto na cara o ar fresco da manhã, os olhos quase fechados porque o Sol obriga. A vista que se tem daqui é uma sobreposição de camadas. O jardim verde, os muros altos e escuros adiante e ao fundo a montanha, que a neblina deixa perceber. Creio estar a conseguir cheirar o sal do mar, que o muro encobriu quando os senhores de branco me encaminharam para cá. Ajudaram-me. Já consigo sentir o que está para lá disto. A menos que façam alguma coisa, não me tiram isto da cabeça. Façam o que fizerem, não me tiram nada. 

Tiraram-me este lugar. Hoje, agora. Estás curado, podes ir. 

As pessoas olham-me, na vila. Não evitam. Uns por pena, outros porque os incomodo. A roupa que trago é a mesma que tinha no corpo antes de andar com números nas costas. Aqui sinto a praia perto de mim, de novo. Os pescadores lá ao fundo não me deixam mentir. 

Adormeço junto ao mar sem dar conta. Acordo com sirenes e luzes. É cedo ainda, pois começam a chegar os primeiros barcos de pesca ao cais, sobrevoados pelas gaivotas. Afasto-me rapidamente, com medo do que seja. Enquanto corro num sentido, mil outros correm no sentido inverso, em direcção à praia. Falam em tiros e morte. 

E disso se falou nos dias seguintes. Sozinho, ao balcão de um café, oiço atento o pouco que se comentava. Entrando a polícia, as memórias dos que sabem alguma coisa apagam-se. Desde aí, estou debaixo de olho. Sou novo aqui. 

O mar, que lá ao fundo afunda, mergulha no redondo. A praia que afunda neste mar. Quase ninguém. Um polícia a olhar em volta. Uma mulher que traz algo na mão, a andar, em direcção ao polícia. As ondas aqui aos meus pés. O pulsar deste mar. A maré que sobe. Deixo-me envolver, embalado pelos sons. Sirenes, duas mãos nos meus ombros, muito rápido. Tenho o direito a permanecer calado e tudo o que disser é usado contra mim. Levam-me para uma sala e eu calado. Contam-me o que eu já começava a perceber em relação aos tiros e à morte. Falam muito em mim e na praia. Encarceram-me numa cela. Depois um corredor negro, com uma porta de ferro ao fundo e uma luz vermelha em cima. 

Que corredor é este?

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quarta-feira, 2 de junho de 2010

A Queda do Império Romano

Segunda-feira
Fui chamado de manhã para um corpo baleado na praia. Onze vezes. Calibre 9mm. Um bando de abutres sobrevoava o cadáver na areia envolto por algas e espuma das ondas. Uma chamada anónima ao nascer do dia deu conta da ocorrência.
À tarde, fui falar com os pescadores nas rochas mas não sabiam de nada. Mostrei-lhes fotografias do corpo mas isso não pareceu impressioná-los. Os homens que estavam nas docas a descarregar os contentores de um barco disseram que quando chegaram a polícia já lá estava. Quando eu saí, às oito da noite, o corpo ainda não tinha sido identificado.

Terça-feira
Procurei no arquivo pelo registo de casos semelhantes e encontrei referências à praia em pelo menos uma dezena de documentos. Homicídios. Até hoje, cinco homens, quatro mulheres, uma das quais grávida, e uma criança. Nenhum dos casos foi solucionado.
À tarde, fui falar com o médico legista no hospital e, de resto, pouco mais pude fazer. Vim mais cedo para casa e passei o serão a escrever, enquanto a minha mulher vê televisão deitada no sofá.

Quarta-feira

Tinha um relatório à minha espera na secretária quando cheguei. As buscas realizadas no dia anterior não tinham conseguido nada melhor que uma caixa de fósforos a poucos metros do corpo, enterrada na areia. Era uma daquelas amostras de publicidade, tinha o endereço de um estabelecimento nocturno no centro da cidade. Eram três da tarde. Esperei até à meia-noite.
Entrei. Perguntei à empregada no balcão se conhecia o indivíduo na fotografia que lhe mostrei. Disse que não mas vi que estava a mentir. De seguida, falei com o seu superior, a quem pedi a gravação das câmaras de vigilância de domingo à noite. Levou-me a uma sala e meteu uma cassete no aparelho. Eram imagens de arquivo de um programa de televisão de há 30 anos. Pelo seu olhar percebia-se que também era a primeira vez que via aquela cassete. Perguntei-lhe quem tinha acesso àquela sala. Qualquer pessoa, à noite é difícil controlar o movimento, qualquer pessoa que saiba o que procura consegue entrar.
São cinco da manhã. Cheguei agora a casa e encontrei a minha mulher a dormir no sofá. A televisão ainda está ligada enquanto escrevo. Um documentário sobre o império romano. Estou cansado, mas sou capaz de ficar mais um pouco acordado para saber como acaba.

Quinta-feira
De manhã, nada a apontar. O meu trabalho esteve limitado à falta de evidências.
À tarde, uma senhora de idade veio à esquadra reportar o desaparecimento do filho. Mandaram-na vir ter comigo. Não chorou. Reagiu como se estivesse à espera. Mais nada. Trouxe para casa o relatório com as informações da vítima. A mãe desconhecia grande parte da vida do filho. De qualquer forma, vou ler isto depois da segunda parte do programa sobre Roma.

Sexta-feira
Despertei de um pesadelo às seis da manhã. Cheguei à praia com uma cana de pesca e era trinta anos mais velho. Aproximei-me do morto, que abriu os olhos e perguntou-me quem eu era. Disse que estava a investigar a sua morte. Mas eu não morri, respondeu com sinceridade. Ajoelhei-me perto do seu corpo e passei os dedos pelos buracos de onde escorria sangue, para lhe mostrar, mas depois tive pena dele. Não sei o que aconteceria a seguir porque acordei.
Falei com os vizinhos, colegas de trabalho, família. Nada. No geral, todos disseram que era uma pessoa solitária. Não acredito. Não encontrei ninguém que o conhecesse melhor. Não acredito. Agora que morreu podem dizer o que quiserem dele, por isso não acredito. Mencionei, também, o nome das restantes vítimas, dos outros casos da praia. Nada. Até segunda, não me preocupo mais com isso.

Sábado
Não consigo parar de pensar no caso. Nem tinha reparado. Só quando, ao jantar, a minha mulher perguntou o que se passa? é que me apercebi que não conseguia parar de pensar nisso. Todos sabem. Os pescadores, os vizinhos, os da discoteca, os da fábrica onde trabalha, todos sabem. Há algo que me escapa. Não faço a menor ideia.
Vou dormir, disse a minha mulher, interrompendo-me o pensamento. Já? Olhei para o relógio. 01h43. Ainda pensei em dizer alguma coisa, mas como pedir desculpa? Morreu um homem. Qualquer vida é mais importante que tudo o resto, mas isso nem a mim me convenceu. Entretanto, já se tinha ido deitar e eu estava sozinho na sala, à frente da televisão. Imagens. De quê? (Tenho quase a certeza que se ela não tivesse falado, eu chegaria lá. Onde?)

Domingo
O dia inteiro perdido. Inútil e absurdo são as palavras que me vêm à mente. Vazio. Mesmo assim, prefiro Hoje que Amanhã. Para sempre domingo. Talvez a resposta esteja na praia. Veremos.


Disparos

aproxima-se alg

estou a cair e




.

quarta-feira, 26 de maio de 2010

Espelho

esquizofrenia: nome feminino
(Do grego skhízein, «fender» +phrén, «mente; espírito» +-ia)
MEDICINA doença mental caracterizada pela dissociação entre o pensamento do paciente e a realidade física do seu próprio corpo ou do ambiente em que ele se encontra.

Sobe. Uns pisos acima entra uma rapariga. Sobe. A luz intermitente do elevador, a piscar a uma cadência não muito regular, prestes a fundir, certamente. Parece que pestaneja, a lâmpada, cedendo ao calor húmido que se faz sentir. Espelhos que enchem por completo as paredes que confinam o elevador, de forma que aparecem reflectidas num dos espelhos uma senhora de meia-idade e uma rapariga. A senhora encara os pés, com severidade, como se esperasse deles uma justificação pelas dores que causam. A rapariga deposita, fascinada, toda a sua atenção no pestanejo da lâmpada. Não trocam olhares, nem entre elas, nem com elas próprias, pelo espelho. Uma tem a cabeça dirigida para baixo, a outra para cima. O espelho intermitente reflecte-as friamente.

Bruscamente, o elevador parou num estremecimento metálico. A senhora estendeu os braços num ápice para readquirir o equilíbrio. Está nervosa e impaciente. O espelho não vê quase nada, uma vez que agora só a fraca luz de presença subsiste. A rapariga, que viu interrompido o seu fascínio pela lâmpada, acorda e dirige-se à senhora.

- Que horas são?, pergunta.

- Que horas são? Não vê que estamos aqui presas? Só pode estar louca… Isto só a mim! Alguém que… que está num elevador avariado, ter a distinta lata de…

- Eu sou louca, eu não sou louca, eles dizem que sou louca, esta diz que sou louca, aquele também. Não sei ao certo.

- O que é que está pr’aí a dizer, garota?

- Perguntei se tem horas…

Faz-se um silêncio, cortado pela senhora de meia-idade que começa a bater na porta descontroladamente, com medo, aos pontapés, transpirada, com receio de perder as horas, temendo ficar ali, com terror da miúda, em pânico com aquela calma. Ouve-se uma voz vinda do telefone de emergência do elevador, que pede desculpa pelo transtorno e comunica que os técnicos estão a tratar do problema. A senhora tenta entrar em diálogo com a voz.

- Tirem-nos daqui! Ela tem problemas! É louca!

Em vão. Era uma mensagem automática.

E a rapariga olha para o espelho e continua: tem horas?, tenho compromissos que o dia está quente, mas não tenho pressa, tenho só que pensar. Ai deixa-me, não me olhes. Não fales agora! Eu sei o que estou a fazer. É só isto que não abre.

- Eles não me largam, sabe? Sente-se bem?, perguntou a rapariga à senhora.

A senhora de meia-idade amarela. A luz fraca e o calor. Com lágrimas de suor a percorrer-lhe os traços carregados de ambas as faces. A maquilhagem que já não é mais do que uma máscara hedionda.

A rapariga, nova, que desvia a vista do espelho e dela própria, claro, olha para o tecto, para o chão, para a porta, na esperança de que tirem dali a senhora que está amarela. E a senhora sentada já, sem forças.

E finalmente o elevador dá uma sacudidela e a porta abre. Surgem duas caras grandes, curiosas e sorridentes e lá dentro ninguém assim. Contudo um ar fresco invade aquele espaço e dá força a ambas para que saiam de lá.

Acorrem as duas caras grandes e curiosas.

A senhora de meia-idade liberta-se e segue em frente empertigada, não se passou nada, já terminou.

Para trás ficou a garota e as caras como que deformadas num sorriso que se distorce para lá das feições.

- Que horas são?, ouve a senhora ao longe.
.

nas mesas de bar, das suas vidas...

Entre a rigidez de horários, o stress e o turbilhão de pensamentos e responsabilidades, os estudantes daquela faculdade deram-lhe vida própria e uma identidade constante entre devaneios subjectivos e interesses concretos. Nessa faculdade, onde se cultiva o conhecimento e a bebedeira, o anonimato confunde-se com a pessoalidade; as correrias entre corredores e aulas com olhares despercebidos; os cumprimentos casuais com a ânsia dos planos pós-estudos; a multidão daqueles corredores, daquelas salas, daqueles livros com a intensidade das conversas e das relações. Depois de mais um dia de intensa normalidade estudantil, o bar 24 enche. Janta-se gente, bebe-se cerveja, fuma-se e discute-se abertamente:

- É realmente incrível essa nova geração de músicos Portugueses que têm inovado pegando no velho, transformando em novo. Esses novos refrescantes caminhos…! Deolinda, Mazgani, Virgem Suta, Diabo na Cruz, Ana Moura, Orelha Negra, Rodrigo Leão… Vocês não sentem isso?, diz Tiago ao amigos.

- Sabes que para mim é difícil avaliar essas coisas Tiago. Se me falares da influência do Kuduro, do Kizomba e dos estilos Africanos na música e na indústria em Portugal é diferente, diz Wagnner.

- Desde que cá cheguei nunca compreendi o vosso gosto pelo fado, mas enfim, é vosso!, entra Katrina na conversa.
(Mais uma rodada)

- É claro que eu vejo isto de outra forma, cresci neste meio, mas a verdade é que Portugal tem sido um bom mercado para os estilos Africanos Waggner, especialmente para a música Angolana.

- Mais na literatura talvez, remata Katrina, em Portugal quase não se vêm escritores de Leste.

- Vocês também estiveram muito tempo fechados ao Mundo Katrina. O meu pai dizia-me que Angola deve ser livre e independente mas não uma província soviética como os países de Leste, como o teu a Ucrânia.

- E isso não significa que não haja boa literatura no Leste, responde Katrina.

- Sim é claro que há, diz Waggner.

- Excelentes, diz Tiago.

Acendem um cigarro e deixam que o silêncio da introspecção os absorva.

- Acho que os nossos países nunca se compreenderam muito bem, intervém Tiago. Nunca percebi nada de religiões Africanas e pouco dos modos de vida de Leste.

- Às vezes nem nós percebemos bem, mas sabemos que somos bem diferentes. Temos histórias, culturas e identidades diferentes.

- Exacto, concorda Katrina.

- Incompatíveis?!, perguntam-se todos.

- Quase nunca!, respondem-se todos.

- Vamos ter uma semana difícil, diz Katrina.

- Nem me digas nada, vamos mas é falar de coisas alegres que hoje é Sexta-Feira… Bebem mais?, pergunta Tiago.

- Sim, pode ser.

- Claro, traz tremoços.

- Ok, coisas alegres… Segunda-Feira vou fazer cachupa, um prato Africano, ou melhor Cabo Verdiano, jantam lá em casa?

- Por acaso nunca comi essa merda Waggner, eu sou mais para a Feijoada…

- Pois nota-te, responde Waggner e ambos riem.

- Eu vou se jantarem na semana a seguir na minha casa..., diz Katrina
- Porra, vais fazeres aqueles pratos estranhos que se comem na tua terra?

- Não querem, não vão.

- Claro que vamos não vamos Waggner, fica combinado nesta mesa que as próximas três semanas faremos às segundas o nosso roteiro gastronómico em defesa da globalização social…

Todos riem já meio tocados, mas extremamente felizes…

E ali permaneceram até encherem o cinzeiro, o estômago e o cérebro. Três estudantes na mesma cidade, na mesma faculdade. Um Angolano filho da colonização, uma Ucraniana filha da guerra fria e do bloco soviético, um Português filho de uma história dependente. Os três com identidades próprias - na cultura, na organização, na história, nas vivências -, os três como uma identidade comum – humanos, estudantes, amigos. Os pais deles há uns anos talvez não compreendessem como é que um Angolano, um Português e uma Ucraniana podem estar sentados na mesa de um bar a noite inteira a partilhar sorrisos, opiniões, histórias e aspirações.

Mas há barreiras que se deitam abaixo, e a verdade é que no hoje, na identidade de cada um dos três está implícita a identidade que os três construíram juntos, nas mesas de bar das suas vidas.

Metro

Para ser lido a preto-e-branco
Não ficou ninguém na estação para ouvir o metro desaparecer ao fundo do túnel. Permaneceu abandonada por um momento até que o seu silêncio foi cortado pelo eco duns sapatos que desceram as escadas sem pressa. O rapaz sentou-se num banco virado para a linha que seguia para Oeste e pousou a mochila no assento do lado. Estava sozinho.
Tão cinzenta, a estação, apesar das cores. Seguiu com o olhar os carris até que, sem dar por isso, deixou de os ver na completa escuridão do túnel que parecia não acabar. Absorto na profundidade em que procurava as luzes do metro, o tempo parou.

Quando voltou a si, já não estava sozinho. Na plataforma, mais pessoas aguardavam o metro. Do silêncio da contemplação depressa regressou ao ruído de fundo. Novamente anónimo.
– Então? – perguntou alguém, tocando-lhe no ombro. Virou-se para trás. Um velho, de casaco de lã. – Já não te lembras de mim, pois não?
– Não... Desculpe, mas não estou a reconhecê-lo.
– É natural... já se passaram tantos anos... na altura, davas-me por aqui – disse, apontando para os joelhos. Levantou a mochila do rapaz e sentou-se ao seu lado.
– Talvez pelo nome me lembre – sugeriu o jovem, um tanto constrangido.
– Conhecia o teu avô.
– O meu avô João? – perguntou, com alguma perplexidade.
– Sim. Há muitos anos que não o vejo, mas lembro-me bem de ti...
– O senhor trabalhou com ele no mercado?
– Não... Só o conheci mais tarde, mas tornámo-nos bons amigos. Ele tinha muito orgulho em ti, sabias? Quando eras pequeno, gostava muito de brincar contigo. Via-se que era feliz.
Ao ouvir o outro, a expressão do rapaz ficou mais grave. O velho continuou a evocar o passado até que reparou nas lágrimas que se formavam nos olhos do jovem. Ao notar a sua tristeza, interrompeu o seu discurso.
– O que se passa? – perguntou. O rapaz procurou disfarçar o choro, levando as mãos ao rosto, mas não conseguiu conter a mágoa. Abraçou o velho.
– Ele morreu no ano passado – soluçou com dificuldade. O homem apertou-o nos seus braços.
– Era um bom homem. E gostava muito de ti, não te esqueças disso. – ao ouvir isto, o rapaz chorou com mais intensidade.

Não disseram mais nada. Pouco depois, começou a ouvir-se o metro do fundo do túnel e as pessoas aproximaram-se da linha amarela. No tumulto da multidão que saía e entrava, o rapaz perdeu o velho de vista e, não o conseguindo encontrar na plataforma, decidiu procurá-lo dentro do transporte. A agitação acabou tão depressa como surgiu.
Não ficou ninguém para ouvir o metro desaparecer ao fundo do túnel. A pouco e pouco, a estação foi-se enchendo novamente. Uma mulher chegou e sentou-se num dos bancos.
– Então? – perguntou o velho, tocando-lhe no ombro. – Já não te lembras de mim, pois não?

Amnésia

À saída da sala 27, de Estatística, o João estava à minha espera. Queria convidar-me para uma festa em casa dele, sexta à noite. Não recusei. Era o primeiro ano em Lisboa, queria aproveitar tanto quanto podia.
Apanhei o metro, estava apinhado. A minha mochila de há anos, ia contra um peito de um homem alto, praticamente careca e de bigode. Cheguei ao nosso pequeno apartamento. Sim, nosso porque o partilhava com um amigo de infância que tinha decidido ir também para a capital. Entrei, fechei a porta, limpei os pés no tapete imundo, atirei a mochila para cima da cama e chamei por ele. “Angie” tocava suavemente e segui o som. No quarto, debruçado sobre livros e de cigarro ao canto da boca, convidou-me a entrar com um sorriso. Puxei de uma mortalha, com um pedaço da capa do “Introdução às Ciências Sociais” fiz um filtro manhoso e destilámos o que tinha comprado a um colega de curso.

Fumámos aquela droga que nos fazia quase levitar, subimos a aparelhagem e ao som da música que ambos adorávamos, fazíamos confissões silenciosas. Ao contrário de todas as outras vezes quis sair, ir sem ter hora para chegar. Percorremos ruas e vielas, fumámos mais. A loucura e a desinibição apoderaram-se de mim, sentia-me capaz de correr quilómetros. E corri. Um autocarro que fazia a última ligação da noite ia chegando. Saltei para a estrada e pensei que ia conseguir pará-lo com apenas um braço.

Três dias depois acordei, demorei algum tempo a perceber onde estava. Aos pés da cama, estavam um homem e uma mulher, cada um com expressões diferentes no rosto. A mulher apresentava um semblante triste e preocupado, que rapidamente se transformou em alívio quando me viu pestanejar. O homem, do seu lado esquerdo, tinha ar de poucos amigos, parecia incomodado com alguma coisa. Perguntei-lhes: -“Quem são vocês?” – ela respondeu: -“Sou a tua mãe, meu filho. Não te lembras de mim? Que foste tu fazer? Como te sentes? Tive tanto medo de te perder…Nunca mais me faças isto.” Tudo aquilo me confundiu ainda mais. A minha mãe? Eu nem conheço esta mulher histérica que me beija as mãos e me abraça com tanta força. Saíram pouco tempo depois, a pedido do médico que acompanhava o meu caso. Comi uma sopa e adormeci. Essa noite tive um sonho. Eram flashes que iam e voltavam. Via-me a ser atirado brutalmente contra um muro de pedra. Algo ou alguém me tinha feito aquilo.

Durante semanas aquelas duas pessoas iam visitar-me e a cada dia que passava o seu comportamento tornava-se desesperado. Queriam que eu acreditasse neles, no que me diziam. O homem de bata branca pedia-lhes que tivessem calma e soubessem esperar. Sabia o meu nome, a minha data de nascimento, o nome da minha namorada, o curso em que estava…Mas não conseguia identificar os meus pais. De manhã cedo, chamei a enfermeira e pedi que confirmasse se aqueles eram realmente os meus pais. Acariciou a minha testa ternamente sobre o olhar desconfiado de Madalena, que sentada a um canto do quarto, de mala ao colo, me olhava e trazia flores, margaridas. As nossas flores. Dela eu não me esqueci. Era impossível esquecê-la.
Queria poder olhar os meus pais e ter a certeza que tinham sido eles que me tinham criado ao longo dos anos. Era capaz de sentir a importância que eles tinham mas quando puxava o passado e recordava os momentos de meninice, as figuras paternas não tinham rosto. Doía não saber quem era ali. Doía não saber a quem podia chamar “pai” e “mãe”. Aquela minha angústia tornava-me frágil e enfraquecia-me. Levantei-me da cama e deambulei pelos corredores frios do hospital. Em busca da minha identidade, andei alguns metros. Passei pela recepção e continuei. Sai até ao jardim pacato, onde os “hóspedes” que não se encontravam em estado crítico jogavam sueca e faziam croché. Eram duas da tarde, horário de visitas. Não queria que ninguém me viesse visitar, nem a Madalena nem os meus pais, que ainda não acreditava que o fossem realmente. Uma mulher soluçava á beira de um lago com meia dúzia de peixes e instintivamente avancei até ela. A cada passo que dava, a emoção descontrolava-se dentro do meu coração que agora batia rapidamente. Pus-lhe a mão no ombro, a mulher virou-se e ao ver os seus olhos húmidos, a batida do meu peito parou por momentos. Era ela, a minha mãe! Não tinha a menor dúvida. Beijei-a e envolvi o seu corpo com os meus longos braços que há muito esperavam aquele momento. Chorei, limpei-lhe as lágrimas e gritei: “Amo-te mãe! Amo-te! Amo-te!”
Sem saber como, o meu passado que tinha andado fugido de mim, decidiu assaltar-me a alma. Decidiu pregar-me uma partida e trazer de volta a felicidade que sempre fez parte de mim. Ela sorriu, retribui todos os carinhos e foi a correr chamar quem faltava naquele quadro perfeito. Com passos largos, ele andava até mim. As lágrimas inundavam aquele pequeno jardim. Parou, agarrou-me e a alegria que sentia deixou-me sem reacção. Finalmente, sabia quem era.
Começou a chover, estava na hora de voltar para casa.

sábado, 22 de maio de 2010

Lua

Aqui, é tudo tão luminoso que tenho dificuldade em ver. O primeiro pé pisa uma superfície gelada e o segundo segue-o inconscientemente. Branco, é tudo quanto avisto e a infinita dimensão deste espaço assusta-me e não sei se sou capaz de me desprender daqui. Caminho e uma luz mais forte que qualquer outra que alguma vez conheci,aproxima-se. Antes de ter tempo de me questionar acerca do que se passava naquele momento, o foco partiu em busca do que procurava, deixando-me para trás. As pernas tremem incessantemente mas a vontade é superior e corro sem ser capaz de respirar. Não identifico nada por onde passo, não distingo formas nem contornos mas isso há muito que deixou de ser a minha prioridade.

Após tamanha perseguição, a luz interrompe a sua fuga e o riso de uma criança torna o silêncio ensurdecedor. Sobre a sua cabeça, frágil e pequena , aquela luz dissipa-se. Os olhos penetram-me a alma e o seu cabelo parece permanentemente despenteado. Estou frio não de medo, mas de incerteza e dúvida. A única coisa quente naquele perímetro é a mão dela que procura a minha e a aperta com uma força inexplicável. Os seus lábios roxos esboçam um sorriso que me tranquiliza instantâneamente. Sem pensar, beijo a sua testa inocente e suave e a humidade quente da ternura desaparece sem deixar rasto. Onde estará ela? Partiu sem dizer nada...Acordo, desvio as cortinas com as mãos dormentes e suadas e olho o firmamento.Nessa noite, a Lua brilhava.

sexta-feira, 21 de maio de 2010

sem título

Tenho os pulsos presos por uma corrente. Faço força para me libertar, mas não consigo. Sangue escorre das feridas e cobre outras manchas de sangue; sangue velho que parece ter secado há muito tempo.

Ando pela cidade à procura de qualquer coisa, ainda não sei do que se trata, por isso contemplo tudo com incerteza. Tenho a impressão que conheço estas ruas, mas não posso garantir.

Há qualquer coisa de suspeito na expressão das pessoas. Acho que me conhecem, mas não posso garantir.

Ajudem-me, ajudem-me, implora uma voz de criança vinda de trás do prédio. Detenho-me em frente ao beco, de onde ecoam as súplicas num grito cada vez mais estridente e desesperado. Ajudem-me. Ajudem-me. Ajudem-me.

Avanço lentamente para a voz até que a escuridão me cobre por completo. Mal consigo distinguir um rapaz deitado no chão, há pedras em cima do seu corpo. Por favor, senhor, ajude-me a sair daqui. Olho para trás, a rua está distante e as pessoas continuam a caminhar sem dar por nada. E se eu precisar de ajuda?

Ao percorrer a rua, há algo que me perturba. Poderá alguém ter-me visto?

Volto para trás à procura do beco, mas não o encontro. Começo a correr até ao fim da rua mas

estou novamente no beco. Ao perceber a criança deitada, viro-me e de repente

estou novamente no beco. Ajude-me, senhor, ajude-me a sair daqui. Esmagado pelos escombros, o rapaz estende o braço para mim.

Explico que não o posso ajudar, vê, tenho os pulsos presos por uma corrente. À sua frente, faço força para me libertar, mas não consigo. Vou chamar alguém, já venho. Não, não, grita ele, e se acontecer alguma coisa entretanto? Ajude-me a sair daqui.

Ajoelho-me no chão, perto do seu corpo. Não te consigo ajudar, rapaz, tenho os pulsos presos por uma corrente, mas ele não parece compreender e estende novamente o braço para mim.

Não, não. Vê. E mostro-lhe a corrente de ferro. Não posso. Vou chamar alguém para nos ajudar, já venho, e levanto-me. Começo a andar de costas, lentamente, mas o rapaz não tira os olhos de mim. Saberá ele que não pretendo voltar?

Começa a chorar e eu tenho pena dele mas os pulsos presos por uma corrente, vê, não te posso ajudar. Ele estende novamente o braço para mim, sem compreender.

NÃO POSSO AJUDAR. MESMO QUE QUISESSE, TENHO OS PULSOS PRESOS POR UMA CORRENTE, NÃO POSSO, e, ao exclamar isto, aproximo a corrente para que ele perceba e, ao fazê-lo, ele estende rapidamente o braço e agarra na corrente.

Não. Não. Deixa-me sair. Não te quero ajudar. Tenho os pulsos presos por uma corrente, vê, e estendo os braços à volta do seu pescoço.

Deixo-me estar assim por um momento até que ele

perde as forças e solta a corrente, deixando tombar a mão e, por fim, adormece no meu colo.

Os escombros desapareceram entretanto e vejo-me sentado com a cabeça do rapaz nos meus braços.

A corrente desapareceu entretanto e vejo-me sentado com a cabeça do rapaz nos meus braços.

O rapaz desapareceu entretanto e vejo-me sentado no beco sozinho

quinta-feira, 20 de maio de 2010

Quantos conhecidos seus conseguiram voar no palco da existência?

Era uma vez um ser humano:

Correu a Rua Augusta, passou a Praça da Figueira, chegou ao Martim Moniz. Indeciso seguiu para a Palma, Almirante Reis e virou numa das transversais. São quase onze da noite e ele – trato-o por ele, principalmente, pela perda da sua identidade -, faz contas, prevendo desesperadamente a quantidade de comprimidos e álcool que terá que meter para curar a ressaca. Diz-se feliz frequentemente, não destas vezes em que o chão é imundo e o Mundo um mero estado de ansiedade. É nestas alturas que pensa naquilo que realmente é, ou que já não é… Mas as dores dessas representações que o desvirtuam do mundo e o fazem tremer com os olhos, com as mãos, com o pensamento, são as dores mais complexas que, inexoravelmente o fazem sentir vivamente apático! Aqui, nestas imensas caminhadas ao encontro do seu Mundo imaginário, ele sente o Mundo como ele é, e sente-se um bicho preso nesse covil que é o seu Mundo real. É sobretudo por isso que anda tão depressa, para fugir para o seu covil pessoalizado.
Encontrou finalmente o Mundo que perdeu, o sonho que não realizou. Compro-o e injecto-o no braço. A dor desse Mundo antigo desapareceu e o escuro passou a ter luz. Já não se preocupa nada com o que iria acontecer daqui a umas horas, quando o efeito passasse. Apenas se preocupava com o sonho da sua vida, que era agora novamente realizável. Olha para o Mundo com a animalidade do hoje, com o que voa por cima da sua cabeça… naquela arvore a enterrar-se… sentado numa nuvem a falar com aquela personagem que se aproximou e perguntou: tens lume companheiro? E falam, falam, falam… Acaba a noite na esquina que era, no fundo, a cama do seu Mundo. Acorda… e volta ao Mundo inicial, ao Mundo que ele negou, ao injectar-se, para criar esse espaço que lhe parecia tão bonito mas que o estava a matar!

Que sonho teria ele afinal? O que é que o faz drogar-se? Porque é que precisa de reinventar um Mundo novo para se manter vivo?

Ele que agora cura a ressaca com substâncias que o mantêm acordado, ainda que meio imobilizado, teve uma infância normal, absolutamente comum. Sonhou, sim sonhou muito enquanto era jovem… Queria ser um grande piloto de aviões, sonhou-se a voar num mar infinito de descobertas. Entretanto cresceu: disseram-lhe que o Mundo não era uma fórmula facilitista e que não era ele que produziria o seu sonho sobre o Mundo, mas seria o Mundo (não o dele, o real) que deveria produzir o seu sonho, ele apenas era um instrumento operacionalizante daquilo que o Mundo lhe poderia fazer sonhar. Foi um normal estudante, numa normal escola, com uma normal vida… Tão normal que até lhe metia nojo. Não fumava mas bebia. Ingressou no curso de direito na Clássica: voava sobre as suas páginas, viu magníficos aviões nas tutelas, rotas imensas na teoria clássica, planos de voo no direito penal. Perdeu-se em centenas e centenas de discussões à volta de vinho, de cerveja, de licores.

Navegou, bêbado, pelos caminhos dos seus sonhos perdidos. Era inteligentíssimo: nunca acabou o curso; nunca quis acabar o curso! Decidiu deixar o curso em pausa e quis ir descobrir os sonhos dos outros: quantos conhecidos seus conseguiram voar no palco da existência? Vagueou por conversas, por olhares, por tudos e por nadas, e quando deu por si estava com mais três sujeitos – Y, X e Z, também já tinham perdido a identidade -, soluçando um choro bêbado por nunca ter conseguido lutar por si mesmo.

O Y disse-lhe:
- No meu Mundo, sou o que eu quero!, injectou-se e passou a ser um medico a salvar crianças…
- Ao menos um dia, nesta minha puta de vida, quero se piloto de aviões!

Experimentou, gostou : nunca mais quis sair dos céus!!

(…)

Era uma vez outro ser humano:

Zé era um puto sonhador. Rasgou os joelhos no alcatrão a jogar à bola, deixou copiar trabalhos, pregou partidas… queria ser bombeiro, ajudar os outros. Formou-se na intensidade possível de quem quer inverter o ciclo das coisas. Estudou animação sociocultural e hoje é bombeiro voluntário em qualquer mata que precisa… Faz voluntariado numa associação de apoio a sem abrigos e toxicodependentes. Ganha pouco mas é feliz.

(…)

Encontraram-se na rua, hoje voam juntos… Ele, que afinal se chama Rui, aplicou todas as suas ideias em teorias e práticas aeronáuticas, faz voluntariado. Zé ganhou um amigo, um companheiro, mais um sorriso...

…Rui é novamente feliz, Zé realizado… Sonham, juntos para sempre!