quinta-feira, 3 de junho de 2010

Crónica de uma liberdade

Os corredores são estes onde estou, com paredes caiadas a branco. Por aqui passamos eu e o tempo. A luz dos dias que entra, a falta dela à noite, quando eu, paciente número 2039, penso que não durmo. Por estes corredores, números sentados ou a andar, para trás e para diante, cada um consigo próprio, vazio mesmo assim. Talvez caminhem a par com o eco que os chinelos produzem. Talvez nem lutem contra o tempo. Os que já desistiram sentaram-se e aí ficam até que voltem para o buraco. 

No pequeno varandim que rodeia o edifício sinto na cara o ar fresco da manhã, os olhos quase fechados porque o Sol obriga. A vista que se tem daqui é uma sobreposição de camadas. O jardim verde, os muros altos e escuros adiante e ao fundo a montanha, que a neblina deixa perceber. Creio estar a conseguir cheirar o sal do mar, que o muro encobriu quando os senhores de branco me encaminharam para cá. Ajudaram-me. Já consigo sentir o que está para lá disto. A menos que façam alguma coisa, não me tiram isto da cabeça. Façam o que fizerem, não me tiram nada. 

Tiraram-me este lugar. Hoje, agora. Estás curado, podes ir. 

As pessoas olham-me, na vila. Não evitam. Uns por pena, outros porque os incomodo. A roupa que trago é a mesma que tinha no corpo antes de andar com números nas costas. Aqui sinto a praia perto de mim, de novo. Os pescadores lá ao fundo não me deixam mentir. 

Adormeço junto ao mar sem dar conta. Acordo com sirenes e luzes. É cedo ainda, pois começam a chegar os primeiros barcos de pesca ao cais, sobrevoados pelas gaivotas. Afasto-me rapidamente, com medo do que seja. Enquanto corro num sentido, mil outros correm no sentido inverso, em direcção à praia. Falam em tiros e morte. 

E disso se falou nos dias seguintes. Sozinho, ao balcão de um café, oiço atento o pouco que se comentava. Entrando a polícia, as memórias dos que sabem alguma coisa apagam-se. Desde aí, estou debaixo de olho. Sou novo aqui. 

O mar, que lá ao fundo afunda, mergulha no redondo. A praia que afunda neste mar. Quase ninguém. Um polícia a olhar em volta. Uma mulher que traz algo na mão, a andar, em direcção ao polícia. As ondas aqui aos meus pés. O pulsar deste mar. A maré que sobe. Deixo-me envolver, embalado pelos sons. Sirenes, duas mãos nos meus ombros, muito rápido. Tenho o direito a permanecer calado e tudo o que disser é usado contra mim. Levam-me para uma sala e eu calado. Contam-me o que eu já começava a perceber em relação aos tiros e à morte. Falam muito em mim e na praia. Encarceram-me numa cela. Depois um corredor negro, com uma porta de ferro ao fundo e uma luz vermelha em cima. 

Que corredor é este?

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