As desconectadas imprecisões que se foram construindo e desconstruindo naqueles segundos indecisos de sono fizeram-no suar bastante (sem razão aparente): tinham sido um misto de histórias dos seus avós e de traslados de livros esquecidos que há muito se haviam perdido na longevidade da estante. A nitidez da imagem era duvidosa mas lembra-se de duas torres abatidas, de uma nova moeda, de uma antiga união de países e de uns quaisquer anos loucos de produção musical. No meio de tudo isto havia sexo, sangue, amigos, paisagens. Tinha aberto os olhos contraídos há segundos, instintivamente olhou à esquerda para o ecrã. Não havia escapatória: tinha de picar o ponto e conectar-se…
Ligou-se imediatamente e começou a programar toda a complexa maquinaria distante que ele comandava com o seu joystick de mil e uma definições. Há dias que não entrava na sua máquina de lavar automática, ainda há mais dias que não saia de casa. Ninguém em casa se importava. As horas passavam e ele continuava empardecido pela ofuscação do aparelho. Eram já quarenta e quatro da tarde e o sistema já estava encaminhado, restava-lhe a manutenção. Selecciona um menu meio indiscriminadamente e chama a família, cada um pega o seu tabuleiro – há coisas mesmo difíceis de explicar: como é que em segundos se produz comida de aparência fresca? Será que ele com o seu joystick também é responsável por uma máquina de comida fresca de uma outra qualquer família? -, e cada um segue para o seu canto. Fuma mecanicamente e vê claridade no horizonte:
- “Há muito tempo que a fumarada não me deixava apreciar tão bem os raios de sol perdidos”, disse em voz cabisbaixa para o sujeito figurativo a quem ele exigia o diálogo dos bêbados. Julgava-se uma espécie de vanguardista embora apenas usasse o termo pela sua carga histórica, ainda que nem soubesse o que esse arcaísmo queria dizer. O ecrã deu sinal e as vanguardas ficaram imóveis. Voltou para a máquina, para o ecrã…
A noite impõe-se, e mantém a escuridade da casa (ainda que nesse dia os raios de sol tivessem perdido a vergonha); o turno muda, alguém de zona indefinida pega no seu joystick; a máquina fica em modo standby (não desactivada) e o joystick pronto a ser usado; senta-se e fuma no seu novo tapete enchumaçado, que lhe ofereceram numa data em que as pessoas se juntam por causa do nascimento de um tipo importante da história; os outros juntam-se a ele. Ligam o telecomputador e cada um escolhe a sua definição. (Obviamente nem é preciso controlo de privacidade porque todos estão auto absorvidos: o puto mais novo joga pornografia online ao lado do pai que vê um documentário sobre animas de orelhas grandes e pescoços gigantes já extinto há umas décadas. Aos altos berros a filha infiltra uns ruídos nos ouvidos e parece meio alterada, a mãe finge-se descontraída consigo mesmo). O ecrã aconselha mudança de planos, eles aceitam e decidem fazer uma viagem juntos. Aconchegam-se no novo tapete, colocam fones e adormecem…
(…)
Era este o sonho perfeito de Tomás, contou-mo uma vez: decidi escreve-lo. Presumindo estar em Outubro, há meses que não conversamos. Tomás contou-me como gostava de acordar, trabalhar, comer, desanuviar, viajar e sobretudo de ter uma família mais ou menos perto. A última vez que o vi estávamos a fazer aquilo que melhor sabemos fazer, a sonhar com um Mundo inexistente. Não sei se ele me conhecia nem se eu o conhecia a ele, mas isso interessa pouco agora. Vagueio por estes campos desabitados (onde nos encontrávamos às vezes), não há resto de vida, nada! Trago apenas comigo um pano para limpar o suor. No raio de quilómetros não vejo quase ninguém, apenas o calor. Chego-me ao bebedor público dou as goladas permitidas. Será melhor voltar para a frescura do meu Mundo subterrâneo.
(…)
Quando Tomás acordou, ainda lá estavam todos, maquinalmente olhou para a esquerda, para o ecrã: estava na hora de picar o ponto!!
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