quarta-feira, 26 de maio de 2010

Amnésia

À saída da sala 27, de Estatística, o João estava à minha espera. Queria convidar-me para uma festa em casa dele, sexta à noite. Não recusei. Era o primeiro ano em Lisboa, queria aproveitar tanto quanto podia.
Apanhei o metro, estava apinhado. A minha mochila de há anos, ia contra um peito de um homem alto, praticamente careca e de bigode. Cheguei ao nosso pequeno apartamento. Sim, nosso porque o partilhava com um amigo de infância que tinha decidido ir também para a capital. Entrei, fechei a porta, limpei os pés no tapete imundo, atirei a mochila para cima da cama e chamei por ele. “Angie” tocava suavemente e segui o som. No quarto, debruçado sobre livros e de cigarro ao canto da boca, convidou-me a entrar com um sorriso. Puxei de uma mortalha, com um pedaço da capa do “Introdução às Ciências Sociais” fiz um filtro manhoso e destilámos o que tinha comprado a um colega de curso.

Fumámos aquela droga que nos fazia quase levitar, subimos a aparelhagem e ao som da música que ambos adorávamos, fazíamos confissões silenciosas. Ao contrário de todas as outras vezes quis sair, ir sem ter hora para chegar. Percorremos ruas e vielas, fumámos mais. A loucura e a desinibição apoderaram-se de mim, sentia-me capaz de correr quilómetros. E corri. Um autocarro que fazia a última ligação da noite ia chegando. Saltei para a estrada e pensei que ia conseguir pará-lo com apenas um braço.

Três dias depois acordei, demorei algum tempo a perceber onde estava. Aos pés da cama, estavam um homem e uma mulher, cada um com expressões diferentes no rosto. A mulher apresentava um semblante triste e preocupado, que rapidamente se transformou em alívio quando me viu pestanejar. O homem, do seu lado esquerdo, tinha ar de poucos amigos, parecia incomodado com alguma coisa. Perguntei-lhes: -“Quem são vocês?” – ela respondeu: -“Sou a tua mãe, meu filho. Não te lembras de mim? Que foste tu fazer? Como te sentes? Tive tanto medo de te perder…Nunca mais me faças isto.” Tudo aquilo me confundiu ainda mais. A minha mãe? Eu nem conheço esta mulher histérica que me beija as mãos e me abraça com tanta força. Saíram pouco tempo depois, a pedido do médico que acompanhava o meu caso. Comi uma sopa e adormeci. Essa noite tive um sonho. Eram flashes que iam e voltavam. Via-me a ser atirado brutalmente contra um muro de pedra. Algo ou alguém me tinha feito aquilo.

Durante semanas aquelas duas pessoas iam visitar-me e a cada dia que passava o seu comportamento tornava-se desesperado. Queriam que eu acreditasse neles, no que me diziam. O homem de bata branca pedia-lhes que tivessem calma e soubessem esperar. Sabia o meu nome, a minha data de nascimento, o nome da minha namorada, o curso em que estava…Mas não conseguia identificar os meus pais. De manhã cedo, chamei a enfermeira e pedi que confirmasse se aqueles eram realmente os meus pais. Acariciou a minha testa ternamente sobre o olhar desconfiado de Madalena, que sentada a um canto do quarto, de mala ao colo, me olhava e trazia flores, margaridas. As nossas flores. Dela eu não me esqueci. Era impossível esquecê-la.
Queria poder olhar os meus pais e ter a certeza que tinham sido eles que me tinham criado ao longo dos anos. Era capaz de sentir a importância que eles tinham mas quando puxava o passado e recordava os momentos de meninice, as figuras paternas não tinham rosto. Doía não saber quem era ali. Doía não saber a quem podia chamar “pai” e “mãe”. Aquela minha angústia tornava-me frágil e enfraquecia-me. Levantei-me da cama e deambulei pelos corredores frios do hospital. Em busca da minha identidade, andei alguns metros. Passei pela recepção e continuei. Sai até ao jardim pacato, onde os “hóspedes” que não se encontravam em estado crítico jogavam sueca e faziam croché. Eram duas da tarde, horário de visitas. Não queria que ninguém me viesse visitar, nem a Madalena nem os meus pais, que ainda não acreditava que o fossem realmente. Uma mulher soluçava á beira de um lago com meia dúzia de peixes e instintivamente avancei até ela. A cada passo que dava, a emoção descontrolava-se dentro do meu coração que agora batia rapidamente. Pus-lhe a mão no ombro, a mulher virou-se e ao ver os seus olhos húmidos, a batida do meu peito parou por momentos. Era ela, a minha mãe! Não tinha a menor dúvida. Beijei-a e envolvi o seu corpo com os meus longos braços que há muito esperavam aquele momento. Chorei, limpei-lhe as lágrimas e gritei: “Amo-te mãe! Amo-te! Amo-te!”
Sem saber como, o meu passado que tinha andado fugido de mim, decidiu assaltar-me a alma. Decidiu pregar-me uma partida e trazer de volta a felicidade que sempre fez parte de mim. Ela sorriu, retribui todos os carinhos e foi a correr chamar quem faltava naquele quadro perfeito. Com passos largos, ele andava até mim. As lágrimas inundavam aquele pequeno jardim. Parou, agarrou-me e a alegria que sentia deixou-me sem reacção. Finalmente, sabia quem era.
Começou a chover, estava na hora de voltar para casa.

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