Nessa noite, o jovem Padre não dormiu. Ficou deitado na cama a observar, pelas frestas do estore, a claridade da madrugada. A iluminação alaranjada dos candeeiros da rua, por trás da parede, delineava o contorno dos móveis no quarto. A romper o silêncio absoluto, uma voz dentro da sua mente.
“Porquê?”
A imagem de uma mulher a colocar esta pergunta, entre soluços, a morder o lábio na esperança de uma resposta. Enquanto recordava este momento daquela noite, dobrava o corpo na cama, segurando os joelhos contra o peito, e fechava os olhos com força para não conseguir ver. Mas via. Não lhe conseguia escapar porque a imagem estava gravada no interior das suas pálpebras. E então, de um momento para o outro, como se de nada se tratasse, o tempo retrocedia para o velório da noite. Uma criança de quatro anos, que tinha morrido atropelada, sorria numa fotografia em cima do caixão. As pessoas sentadas, as que rezavam ajoelhadas, as que se persignavam ao entrar, as que se reuniam em volta dos pais e dos avós. Numa expressão de dor, sofrimento, angústia. A mãe.
“Porquê?”
Uma mulher sentada na ponta do último banco, à maior distância que podia estar dos restantes, sem expressão. O seu olhar preenchido por vazio e indiferença. Sem alma.
Na primeira vez, o Padre reparou nela pelo canto do olho, não dando importância, apenas uma mulher que queria estar sozinha. Na semana seguinte, a mesma coisa. Depois dessa, duas vezes. No início de Abril, passou a vir três vezes por semana e quando chegou à última semana do mês, veio todos os dias. Nas primeiras vezes, sempre a mesma rotina. Entrava e ficava horas sentada na ponta do último banco. A partir da terceira semana de Março, levantava-se e, antes de sair, vinha consolar a família. Em Abril, passou a fazê-lo assim que chegava e depois sentava-se no primeiro banco, a ponto de conseguir ouvir as conversas de alguns, incluindo a do Padre.
“Porquê?”
Discretamente, deixou escapar um sorriso que o Padre foi a tempo de reparar. Ele que, entretanto, adquirira o hábito de desconfiar da sua presença cada vez mais próxima e amigável, cujas intenções se desconheciam. Tornou-se evidente, a dada altura, que havia um limite de pessoas conhecidas de alguém que poderiam morrer no mesmo mês. Quando a mulher começou a vir todos os dias, a dúvida dissipou-se por completo. Certa noite, encontrando outro Padre na igreja, perguntou-lhe se conhecia aquela mulher. O Padre mais velho disse que sim e aproximou a boca ao ouvido do outro, tapando a cara com uma mão, para não se ouvir o que segredava.
Parecia que sentia prazer em estar perante tamanho sofrimento, o que atormentava ainda mais as noites do Padre, que, em vão, procurava compreender as razões da sua satisfação. Ele tinha, para mais, a impressão que ela conhecia a sua angústia de não conseguir dormir, e que se comportava dessa maneira para fazê-lo sofrer, como alguém que crava as unhas na ferida de outra pessoa, e depois limpa o sangue à sua pele.
– Podemos falar? – perguntou à mulher que estava de costas à sua frente, na entrada, depois do velório. A mulher acendeu um cigarro.
– Agora não – respondeu, sem se virar, antes de começar a andar. Percorreu alguns passos antes de o Padre falar.
– Eu sei quem você é.
Ela parou e voltou atrás. Aproximou-se lentamente do Padre.
– Não pense que me conhece porque sabe quem eu sou.
Foram para um café, o único que, à meia-noite, ainda estava aberto.
Quando a empregada voltou com dois cafés, continuaram a conversa.
– Por que faz isto?
– Isto o quê?
O Padre hesitou por um momento, como se não soubesse dizer do que estava a falar.
– Por que vem aos velórios?
Ela sorriu e o seu olhar ficou preso numa direcção, como se estivesse concentrada na resposta que poderia dar.
– Padre, Padre, Padre. Isso é pergunta que se faça? – respondeu e riu-se.
– Tem alguma coisa a ver com a morte dos seus pais?
A mulher ficou imóvel, com um olhar de ódio. O Padre continuou.
– Sei que saiu desta cidade quando era mais nova e, quando voltou esperando reencontrar os seus pais, disseram-lhe que tinham falecido há mais de dez anos. Soube-o da pessoa que lho disse.
Ela ouviu o Padre com uma expressão de gravidade mas, depois da última afirmação, soltou uma gargalhada.
– Não pode ter ouvido essa história da pessoa que mo disse. Morreu no ano passado, nunca me vou esquecer desse velório.
Bebeu o café e levantou-se. Aproximou-se da cadeira do Padre e baixou-se junto dele.
– Quer saber por que o faço? Sente-se menos culpado se lhe disser? Pois eu digo. Porque me faz sentir melhor. Porque chego a casa nas noites em que venho e consigo deitar-me e dormir a noite toda sem problemas. Sinto o corpo menos pesado no dia seguinte, como se me tivesse livrado de um fardo. Não encontro melhor do que isto. Porque me falta alguma coisa, falta-me uma despedida, falta-me o velório dos meus pais, que passaram a velhice sem ver a única filha e ninguém para lamentar a sua morte. Faltou-me pedir desculpa antes de os enterrar, faltou-me o que nunca mais poderei recuperar, faltou-me encerrar o assunto. Não encontro melhor do que isto. Espero que sirva para alguma coisa. Agora despeço-me, porque tenho muito que dormir.
Deitado na cama, a observar a claridade da manhã, os raios de sol que trespassavam pelas frestas do estore, o Padre sentiu fechar os olhos e, mesmo antes, ouviu uma pergunta.
“Porquê?”
E uma mulher que dormia.
quarta-feira, 5 de maio de 2010
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Excepcional!
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