Entrou num bar com aspecto duvidoso, cheio de gente ainda mais duvidosa. Tinha saído para beber, precisava de organizar os seus pensamentos. Dirigiu-se ao balcão e pediu um licor com uma pedra de gelo. Já sentado, numa mesa redonda com dois lugares, os seus olhos recaíram sobre uma mulher loira, de jeans e top azul. Dançava sozinha, sentia cada batimento da música tão interiormente que se torna difícil descrever com precisão.
Trocaram olhares furtivos, uma espécie de avaliação mútua. A mulher aproximou-se, puxou a cadeira e sentou-se à frente dele, sem pedir permissão. A primeira palavra saiu de forma constrangedora, a seguir a essa saíram muitas mais, agora de forma mais descontraída. Era tarde, tinha que voltar para o seu refúgio. Saiu daquele bar, mas só fisicamente, o seu corpo continuava lá, sentado na mesma cadeira com uma estranha almofada encarnada, a admirar cada pormenor do rosto quase perfeito de Matilde.
Passaram dois dias, decidiu voltar. Era mais cedo do que a primeira vez, repetiu o pedido e sentou-se na mesma mesa. Porém, não a vislumbrou na pista de dança. Com um aceno chamou o empregado e perguntou-lhe, descrevendo-a, se a tinha visto recentemente. Respondeu negativamente, virou costas e voltou para trás do balcão. Estava prestes a sair quando Matilde entrou e foi ter com ele. Disse: -Estava com medo de não voltar a ver-te. Recomeçaram então a conversa que tinham interrompido.
Estes encontros sucederam-se de forma irracional. Nenhum deles se importava realmente com o facto de serem desconhecidos, havia algo que os ligava, uma cumplicidade inegável. Numa dessas noites, pediu um guardanapo. Tirou do bolso interior do casaco de algodão uma esferográfica e escreveu nele “Primeiro beijo?”. Ela sorriu, ao som de The Cranberries aproximaram-se objectiva e lentamente. Fecharam os olhos e deixaram que a paixão os conduzisse. Os lábios carnudos dela, tocaram os finos dele. As línguas entrelaçaram-se e sentiram no peito um nervoso miudinho que após breves segundos se dissipou.
Doze anos depois, partilhavam lar e família. Lua havia nascido há quase seis anos. Enquanto brincava no quarto ingenuamente, os seus pais davam um passeio pelo reduzido mas aprumado jardim. Tomás agachou-se, colheu uma pequena margarida e colocou-a no cabelo de Matilde. Beijou-a, procurou a sua mão, agarrou-a e voltaram a casa. Tinha que sair, não podia faltar àquele jantar de negócios. Vestiu o seu fato azul-escuro, e compôs o nó da gravata. Antes de ir embora, foi aos “aposentos da sua princesa”, pegou nela ao colo e deu-lhe um beijo na testa. Abraçou-a apaixonadamente e deixou-a para trás, para que pudesse continuar a sua distracção animada. Matilde estava já à porta de casa, com aquele sorriso rasgado que ele adorava. Despediu-se dela também.
Estava meia hora atrasado mas tal não o incomodava minimamente. Era um homem realizado, amava intensamente as mulheres da sua vida e para ele, isso era suficiente. O carro percorria o alcatrão agressivamente, o relógio não parava e por mais que estivesse feliz, não descurava as suas responsabilidades. Havia pouco trânsito. Ao lado direito do volante, sob o tablier, estava uma fotografia dos três, tirada nas primeiras férias que passaram juntos. O cliente ligou-lhe e à pressa arranjou uma desculpa na qual nem ele próprio acreditou. Chegou por fim a uma recta, acelerou de forma contundente, os olhos fixos no relógio digital que tinha à sua frente.
Ao passar numa lomba, a fotografia caiu, baixou-se para a apanhar. Bastaram quatro segundos. Quando pôs os olhos na estrada, estava na faixa contrária. Os faróis de um camião de carga cegaram-no por completo, tentou travar, desviar o carro daquele rumo certo. Não conseguiu, o estrondo foi brutal, sentiu-se impotente. Enquanto se entregava á morte, lembrou o beijo, a música e a filha. As sirenes não demoraram a dar sinais de vida. Encontraram-no de olhar vazio. Matilde chegou ao local num ápice, correu para o marido e ao vê-lo morto, chorou, gritou, esbracejou. Embora a sua alma tivesse já abandonado o seu corpo, Tomás segurava ainda na sua mão direita a fotografia.
tipicamente teu, Ruben =)
ResponderEliminarGostei imenso