quarta-feira, 26 de maio de 2010

Espelho

esquizofrenia: nome feminino
(Do grego skhízein, «fender» +phrén, «mente; espírito» +-ia)
MEDICINA doença mental caracterizada pela dissociação entre o pensamento do paciente e a realidade física do seu próprio corpo ou do ambiente em que ele se encontra.

Sobe. Uns pisos acima entra uma rapariga. Sobe. A luz intermitente do elevador, a piscar a uma cadência não muito regular, prestes a fundir, certamente. Parece que pestaneja, a lâmpada, cedendo ao calor húmido que se faz sentir. Espelhos que enchem por completo as paredes que confinam o elevador, de forma que aparecem reflectidas num dos espelhos uma senhora de meia-idade e uma rapariga. A senhora encara os pés, com severidade, como se esperasse deles uma justificação pelas dores que causam. A rapariga deposita, fascinada, toda a sua atenção no pestanejo da lâmpada. Não trocam olhares, nem entre elas, nem com elas próprias, pelo espelho. Uma tem a cabeça dirigida para baixo, a outra para cima. O espelho intermitente reflecte-as friamente.

Bruscamente, o elevador parou num estremecimento metálico. A senhora estendeu os braços num ápice para readquirir o equilíbrio. Está nervosa e impaciente. O espelho não vê quase nada, uma vez que agora só a fraca luz de presença subsiste. A rapariga, que viu interrompido o seu fascínio pela lâmpada, acorda e dirige-se à senhora.

- Que horas são?, pergunta.

- Que horas são? Não vê que estamos aqui presas? Só pode estar louca… Isto só a mim! Alguém que… que está num elevador avariado, ter a distinta lata de…

- Eu sou louca, eu não sou louca, eles dizem que sou louca, esta diz que sou louca, aquele também. Não sei ao certo.

- O que é que está pr’aí a dizer, garota?

- Perguntei se tem horas…

Faz-se um silêncio, cortado pela senhora de meia-idade que começa a bater na porta descontroladamente, com medo, aos pontapés, transpirada, com receio de perder as horas, temendo ficar ali, com terror da miúda, em pânico com aquela calma. Ouve-se uma voz vinda do telefone de emergência do elevador, que pede desculpa pelo transtorno e comunica que os técnicos estão a tratar do problema. A senhora tenta entrar em diálogo com a voz.

- Tirem-nos daqui! Ela tem problemas! É louca!

Em vão. Era uma mensagem automática.

E a rapariga olha para o espelho e continua: tem horas?, tenho compromissos que o dia está quente, mas não tenho pressa, tenho só que pensar. Ai deixa-me, não me olhes. Não fales agora! Eu sei o que estou a fazer. É só isto que não abre.

- Eles não me largam, sabe? Sente-se bem?, perguntou a rapariga à senhora.

A senhora de meia-idade amarela. A luz fraca e o calor. Com lágrimas de suor a percorrer-lhe os traços carregados de ambas as faces. A maquilhagem que já não é mais do que uma máscara hedionda.

A rapariga, nova, que desvia a vista do espelho e dela própria, claro, olha para o tecto, para o chão, para a porta, na esperança de que tirem dali a senhora que está amarela. E a senhora sentada já, sem forças.

E finalmente o elevador dá uma sacudidela e a porta abre. Surgem duas caras grandes, curiosas e sorridentes e lá dentro ninguém assim. Contudo um ar fresco invade aquele espaço e dá força a ambas para que saiam de lá.

Acorrem as duas caras grandes e curiosas.

A senhora de meia-idade liberta-se e segue em frente empertigada, não se passou nada, já terminou.

Para trás ficou a garota e as caras como que deformadas num sorriso que se distorce para lá das feições.

- Que horas são?, ouve a senhora ao longe.
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