quarta-feira, 26 de maio de 2010

nas mesas de bar, das suas vidas...

Entre a rigidez de horários, o stress e o turbilhão de pensamentos e responsabilidades, os estudantes daquela faculdade deram-lhe vida própria e uma identidade constante entre devaneios subjectivos e interesses concretos. Nessa faculdade, onde se cultiva o conhecimento e a bebedeira, o anonimato confunde-se com a pessoalidade; as correrias entre corredores e aulas com olhares despercebidos; os cumprimentos casuais com a ânsia dos planos pós-estudos; a multidão daqueles corredores, daquelas salas, daqueles livros com a intensidade das conversas e das relações. Depois de mais um dia de intensa normalidade estudantil, o bar 24 enche. Janta-se gente, bebe-se cerveja, fuma-se e discute-se abertamente:

- É realmente incrível essa nova geração de músicos Portugueses que têm inovado pegando no velho, transformando em novo. Esses novos refrescantes caminhos…! Deolinda, Mazgani, Virgem Suta, Diabo na Cruz, Ana Moura, Orelha Negra, Rodrigo Leão… Vocês não sentem isso?, diz Tiago ao amigos.

- Sabes que para mim é difícil avaliar essas coisas Tiago. Se me falares da influência do Kuduro, do Kizomba e dos estilos Africanos na música e na indústria em Portugal é diferente, diz Wagnner.

- Desde que cá cheguei nunca compreendi o vosso gosto pelo fado, mas enfim, é vosso!, entra Katrina na conversa.
(Mais uma rodada)

- É claro que eu vejo isto de outra forma, cresci neste meio, mas a verdade é que Portugal tem sido um bom mercado para os estilos Africanos Waggner, especialmente para a música Angolana.

- Mais na literatura talvez, remata Katrina, em Portugal quase não se vêm escritores de Leste.

- Vocês também estiveram muito tempo fechados ao Mundo Katrina. O meu pai dizia-me que Angola deve ser livre e independente mas não uma província soviética como os países de Leste, como o teu a Ucrânia.

- E isso não significa que não haja boa literatura no Leste, responde Katrina.

- Sim é claro que há, diz Waggner.

- Excelentes, diz Tiago.

Acendem um cigarro e deixam que o silêncio da introspecção os absorva.

- Acho que os nossos países nunca se compreenderam muito bem, intervém Tiago. Nunca percebi nada de religiões Africanas e pouco dos modos de vida de Leste.

- Às vezes nem nós percebemos bem, mas sabemos que somos bem diferentes. Temos histórias, culturas e identidades diferentes.

- Exacto, concorda Katrina.

- Incompatíveis?!, perguntam-se todos.

- Quase nunca!, respondem-se todos.

- Vamos ter uma semana difícil, diz Katrina.

- Nem me digas nada, vamos mas é falar de coisas alegres que hoje é Sexta-Feira… Bebem mais?, pergunta Tiago.

- Sim, pode ser.

- Claro, traz tremoços.

- Ok, coisas alegres… Segunda-Feira vou fazer cachupa, um prato Africano, ou melhor Cabo Verdiano, jantam lá em casa?

- Por acaso nunca comi essa merda Waggner, eu sou mais para a Feijoada…

- Pois nota-te, responde Waggner e ambos riem.

- Eu vou se jantarem na semana a seguir na minha casa..., diz Katrina
- Porra, vais fazeres aqueles pratos estranhos que se comem na tua terra?

- Não querem, não vão.

- Claro que vamos não vamos Waggner, fica combinado nesta mesa que as próximas três semanas faremos às segundas o nosso roteiro gastronómico em defesa da globalização social…

Todos riem já meio tocados, mas extremamente felizes…

E ali permaneceram até encherem o cinzeiro, o estômago e o cérebro. Três estudantes na mesma cidade, na mesma faculdade. Um Angolano filho da colonização, uma Ucraniana filha da guerra fria e do bloco soviético, um Português filho de uma história dependente. Os três com identidades próprias - na cultura, na organização, na história, nas vivências -, os três como uma identidade comum – humanos, estudantes, amigos. Os pais deles há uns anos talvez não compreendessem como é que um Angolano, um Português e uma Ucraniana podem estar sentados na mesa de um bar a noite inteira a partilhar sorrisos, opiniões, histórias e aspirações.

Mas há barreiras que se deitam abaixo, e a verdade é que no hoje, na identidade de cada um dos três está implícita a identidade que os três construíram juntos, nas mesas de bar das suas vidas.

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