quinta-feira, 6 de maio de 2010

A linha

Era tarde e estava de saída para casa. Surge sempre mais um paciente para atender, este queixa-se dos ossos, eu dos ossos do ofício. No corredor fitei, pela porta semi-aberta, a doente da cama cinquenta. Poli traumatizada, cheia de tubos, prestes a ir. Ajustei as máquinas ao quadro clínico. Já no comboio, vejo nos olhos da senhora à minha frente a infelicidade dos olhos que estavam deitados na cama. É delicado para um médico percepcionar e aceitar o momento em que os esforços são em vão, é isto que nos diz os livros, mas para mim, nesse instante, aqueles olhos são prognóstico e a ciência caprichosa. Frequentemente concretizo esse prognóstico. Ultimamente tenho pensado muito nisso. 

Sempre foi algo que me intrigou. O momento antes da morte. A luz branca, a luz negra. Aqueles que sorriem. Aqueles que ficam a ver o que fica para trás deles, de olhos abertos. Aqueles que acreditam na vida que continua e como saberemos isso se não podem contar a ninguém. Se o tempo existe desde sempre então nós existimos para sempre; se o tempo existe para sempre então nós existimos desde sempre. Nós somos eternos. Todos estes nós a enrolar isto tudo, de maneira que é difícil decidir no que acreditar.

A doente da cama cinquenta que já lá não está. Pediu-me para não estar. Estou cansado e isto não está muito claro na minha cabeça. Mas se somos eternos somo-lo vivos ou não. Vivo não existe, morto não existe. Só existe o que existe e nós existimos. E os nós outra vez. E desta vez também o Sol na cara a mostrar que existe. Não só existe como está vivo. Se estivesse morto não existíamos da maneira que conhecemos. E isto todos sabem. O que não sabem é a facilidade com que se acaba com a vida a alguém que no-lo pede. O problema é quando querem vida e nós não podemos dar.

Por vezes, se fosse possível, era capaz de trocar de vida com um doente. Fá-lo-ia para sentir a morte. Curar ou não curar, que diferença faz, a eternidade é sempre nossa. Este que vos fala quer morrer para ver se há lado de lá, ou Alá, ou não há. Este que vos fala é louco. 

Por que razão é que as pessoas falam muito lentamente naquele tempo que precede a morte?

Como referi anteriormente, posso matar ou matar-me a qualquer momento. Basta fazer a mistura certa, dá-la a tomar ou tomá-la eu e, como nas drogas, esperar o efeito, as melhoras.

Se olharmos para isto tudo de que vos falei como uma linha de tempo, que se ao vosso raciocínio for mais fácil de apreender, pode ter início e fim, então, pode dividir-se a linha em duas partes iguais e depois dividir a metade da direita por dois, e assim sucessivamente, até ao fim – e este fim é força de expressão: como poderão deduzir, no limite, tal é impossível porque já tenho aqui a mistura certa, porque cada fracção vai ser cada vez mais curta, mais lenta, mais longa, prolongando-se no infinito. Se calhar é isto a eternidade de que eles falam. E agora com isto não sei se em que parte da linha estou.

Sem comentários:

Enviar um comentário