quinta-feira, 20 de maio de 2010

Quantos conhecidos seus conseguiram voar no palco da existência?

Era uma vez um ser humano:

Correu a Rua Augusta, passou a Praça da Figueira, chegou ao Martim Moniz. Indeciso seguiu para a Palma, Almirante Reis e virou numa das transversais. São quase onze da noite e ele – trato-o por ele, principalmente, pela perda da sua identidade -, faz contas, prevendo desesperadamente a quantidade de comprimidos e álcool que terá que meter para curar a ressaca. Diz-se feliz frequentemente, não destas vezes em que o chão é imundo e o Mundo um mero estado de ansiedade. É nestas alturas que pensa naquilo que realmente é, ou que já não é… Mas as dores dessas representações que o desvirtuam do mundo e o fazem tremer com os olhos, com as mãos, com o pensamento, são as dores mais complexas que, inexoravelmente o fazem sentir vivamente apático! Aqui, nestas imensas caminhadas ao encontro do seu Mundo imaginário, ele sente o Mundo como ele é, e sente-se um bicho preso nesse covil que é o seu Mundo real. É sobretudo por isso que anda tão depressa, para fugir para o seu covil pessoalizado.
Encontrou finalmente o Mundo que perdeu, o sonho que não realizou. Compro-o e injecto-o no braço. A dor desse Mundo antigo desapareceu e o escuro passou a ter luz. Já não se preocupa nada com o que iria acontecer daqui a umas horas, quando o efeito passasse. Apenas se preocupava com o sonho da sua vida, que era agora novamente realizável. Olha para o Mundo com a animalidade do hoje, com o que voa por cima da sua cabeça… naquela arvore a enterrar-se… sentado numa nuvem a falar com aquela personagem que se aproximou e perguntou: tens lume companheiro? E falam, falam, falam… Acaba a noite na esquina que era, no fundo, a cama do seu Mundo. Acorda… e volta ao Mundo inicial, ao Mundo que ele negou, ao injectar-se, para criar esse espaço que lhe parecia tão bonito mas que o estava a matar!

Que sonho teria ele afinal? O que é que o faz drogar-se? Porque é que precisa de reinventar um Mundo novo para se manter vivo?

Ele que agora cura a ressaca com substâncias que o mantêm acordado, ainda que meio imobilizado, teve uma infância normal, absolutamente comum. Sonhou, sim sonhou muito enquanto era jovem… Queria ser um grande piloto de aviões, sonhou-se a voar num mar infinito de descobertas. Entretanto cresceu: disseram-lhe que o Mundo não era uma fórmula facilitista e que não era ele que produziria o seu sonho sobre o Mundo, mas seria o Mundo (não o dele, o real) que deveria produzir o seu sonho, ele apenas era um instrumento operacionalizante daquilo que o Mundo lhe poderia fazer sonhar. Foi um normal estudante, numa normal escola, com uma normal vida… Tão normal que até lhe metia nojo. Não fumava mas bebia. Ingressou no curso de direito na Clássica: voava sobre as suas páginas, viu magníficos aviões nas tutelas, rotas imensas na teoria clássica, planos de voo no direito penal. Perdeu-se em centenas e centenas de discussões à volta de vinho, de cerveja, de licores.

Navegou, bêbado, pelos caminhos dos seus sonhos perdidos. Era inteligentíssimo: nunca acabou o curso; nunca quis acabar o curso! Decidiu deixar o curso em pausa e quis ir descobrir os sonhos dos outros: quantos conhecidos seus conseguiram voar no palco da existência? Vagueou por conversas, por olhares, por tudos e por nadas, e quando deu por si estava com mais três sujeitos – Y, X e Z, também já tinham perdido a identidade -, soluçando um choro bêbado por nunca ter conseguido lutar por si mesmo.

O Y disse-lhe:
- No meu Mundo, sou o que eu quero!, injectou-se e passou a ser um medico a salvar crianças…
- Ao menos um dia, nesta minha puta de vida, quero se piloto de aviões!

Experimentou, gostou : nunca mais quis sair dos céus!!

(…)

Era uma vez outro ser humano:

Zé era um puto sonhador. Rasgou os joelhos no alcatrão a jogar à bola, deixou copiar trabalhos, pregou partidas… queria ser bombeiro, ajudar os outros. Formou-se na intensidade possível de quem quer inverter o ciclo das coisas. Estudou animação sociocultural e hoje é bombeiro voluntário em qualquer mata que precisa… Faz voluntariado numa associação de apoio a sem abrigos e toxicodependentes. Ganha pouco mas é feliz.

(…)

Encontraram-se na rua, hoje voam juntos… Ele, que afinal se chama Rui, aplicou todas as suas ideias em teorias e práticas aeronáuticas, faz voluntariado. Zé ganhou um amigo, um companheiro, mais um sorriso...

…Rui é novamente feliz, Zé realizado… Sonham, juntos para sempre!

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