quarta-feira, 9 de junho de 2010

O Soalho

À sua frente, à espera de inspiração. Não lhe virava as costas, embora algo dentro de si lhe sussurrasse um Desiste. Uma tela sentada num cavalete, pacientemente à espera de inspiração. Branca, sem cor, ainda que lá as tenha todas, sobrepostas, mas reflectidas e, portanto, ausentes. Um homem que procura as cores e não encontra, ainda. O amigo que passa, na rua lá em baixo – vê-o pela janela e acena-lhe – e ele com o pincel sem cor, de volta ao quadro. O chão em madeira antiga, coberto de pó. As fendas deixam passar a luz e até mais. O homem ajoelha-se, pesado da idade, levando os olhos pequenos às frinchas, aproximando-se o mais que pode, espreitando o andar inferior. Vê os pratos na mesa, prontos para o almoço. 

Passado um pouco, as pessoas à mesa. Vistas de cima são bolas pretas ou loiras, conforme o cabelo, e as mãozinhas rápidas com os garfos e as facas, como as formigas com o que apanham do chão. Com esforço, o homem puxa a tela para si, decidido a retratar aquilo que para ele é tão real no momento, mais do que o amigo que passa na rua a acenar. Teme fazer notar-se com tanta agitação. As cores não precisam de ser muitas, desde que as use bem, Bastam três, pensa. 

Enquanto se prepara para finalmente começar, ouve o rádio baixinho anunciar um eclipse solar total para esse dia, fenómeno observável durante a tarde naquele ponto do globo que gira, gira, gira. 

Na verdade, naquela família algo de invulgar fazia brilhar o olho ao artista. Tal colava-o ainda mais ao soalho. As crianças barulhentas, os pais severos, impondo respeito. As pinceladas fortes e rápidas, ao ritmo da música descarrilada que os pratos emanam. O homem num estrabismo desmedido, com um olho no andar de baixo e outro na tela. A certa altura faz uma pausa e constata que as crianças saem, com aquela pressa que só elas têm, umas atrás das outras, livres da mesa. Ouve atentamente a conversa, afinal não são os pais, mas que interessa? O quadro é dele. Continua a retocar com alguma cor o barulho que as crianças faziam com o talher, esforçando a memória, puxando pelas texturas e pelas formas de modo que o que fique seja o que ele quiser que seja visto e não necessariamente o que ele observa. 

E o tempo passa aqui e passa nas órbitas lá de cima, que não são excepção pois a lua anda e o Sol também e depois a luz cruza-se e parece que pára mesmo em frente ao Sol e o cumprimenta com um Olá como estás?. E nisto não se vê nada cá em baixo, no globo que gira, gira, gira. 

O homem incomodado por não ver levanta-se, senta a tela no cavalete, senta-se ele também no banco pequeno e quase que não há luz ali, não há brancos: há escuros e negros. Fita o quadro com severidade, rindo-se depois com o caricato daquele impasse. Está farto de saber. Há dois séculos que o sabe. É sempre preciso estragar um pouco o quadro para o poder terminar. 
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