quinta-feira, 10 de junho de 2010

Verdade dolorosa

Voltava a casa depois de mais um dia difícil no hospital. Vivia sozinho, divorciou-se há quase quatro anos e estava bem assim. Tinha um filho adolescente que de quinze em quinze dias o vinha visitar. O trabalho era tudo para ele, sentia-se realizado e não tinha objectivos concretos de formar família, já o tinha feito e não se tinha saído muito bem.

O despertador tocou às 07:45h e interrompeu-lhe o sono. Esfregou os olhos e espreguiçou-se. Foi directo à cozinha, barrou manteiga num pão e bebeu um copo de leite frio em três goladas. Tomou um duche rápido, vestiu o fato que a empregada tinha engomado no dia anterior e pôs uma gravata azul listada de amarelo. Os sapatos engraxados brilhavam à luz do sol. Antes de sair passou pelo escritório e recolheu a pasta de couro, dando um jeito na fivela mal encaixada.
Eram 09:02h quando chegou ao hospital. Passou pela recepção e com um aceno cumprimentou a Dona Teresa, que de óculos no nariz retribuiu com um sorriso dócil. No gabinete estava já à sua espera um garoto negro com ar cansado e abatido e a sua mãe, cabisbaixa e inquieta. Chegou perto do miúdo e perguntou: “Como te chamas?”- respondeu num tom de voz fraco: “Miguel”.

-“E que te dói, Miguel?”

-“A cabeça. Dói muito.”

Miguel tinha 6 anos e a mãe deu o resto das informações ao médico. Disse que hà uns tempos que ele se queixava de dores de cabeça, não eram muito fortes mas constantes. Mostrou-se também preocupado porque a criança tinha alguma sensibilidade à luz. Perante este panorama, o termo aneurisma foi inundando o pensamento do Dr. Pedro. Recostou-se na cadeira e tomou uns apontamentos numa folha branca onde estavam os dados de Miguel.

Mandou fazer uns exames para ter a certeza. Não queria por nada deste mundo que o seu diagnóstico estivesse correcto. Era só uma criança indefesa, ainda sem maldade com tanta vida pela frente. Sim, era um aneurisma, de primeiro grau. Tinha oitenta por cento de hipótese de sobreviver. Não era médico há muitos anos, nunca tinha passado por situação semelhante. Num flashback inoportuno, viu a imagem de um dos professores da Faculdade de Medicina explicar que um aneurisma cerebral era basicamente um vaso sanguíneo anormalmente dilatado no cérebro que se rompesse provocaria danos ao nível da respiração, originando morte por paragem respiratória.

Não ia ser fácil dizer à mãe o que podia acontecer. Chorou durante minutos, estava desesperada e implorou-lhe que lhe salvasse o filho.
Uma semana depois, Miguel entrou para a sala de operações com a mesma expressão no rosto. Adormeceu vítima da anestesia e momentos depois foi a vez de o médico entrar. Não tinha dormido nada, aliás, não passava uma noite em condições desde o dia em que tinha visto o garoto. Era a sua quinta operação e nenhuma das anteriores exigia metade do cuidado desta. Lavou as mãos e os braços, estava pronto, pelo menos aparentava estar. Era uma intervenção de risco, uma craniotomia. O objectivo era colocar em redor do vaso sanguíneo uma espécie de clipe de titânio a fim de evitar que o aneurisma rompa. A enfermeira esterilizou todo o equipamento e a operação teve inicio. Começaram por fazer um corte no crânio, abrindo-o cautelosamente. As pingas de suor escorriam-lhe pela testa e a voz inquietante da mãe a pedir que lhe salvasse o filho, era aterradora. Percebeu que não estava preparado, mas não podia voltar atrás. Tinha que tomar as rédeas e ser ele o comandante do navio. Pegou nas pinças, a firmeza praticamente inexistente. Recuou, baixou os braços, olhou para os colegas e disse:

“Porra, eu não consigo fazer isto. Não consigo.” – Quem estava do seu lado esquerdo, pôs-lhe a mão no ombro, aproximou-se e respondeu: “Só tu podes fazer isto, tens que ser tu! Vais conseguir, o miúdo vai sair daqui bem.”

Avançou de novo. A pressão apoderou-se de todos os seus músculos, não ia ser capaz. Aplicou o primeiro clipe com sucesso, mas curiosamente não se sentiu confiante. Ao segundo, as mãos tremiam muito, tinha a sensação que aquela operação estava destinada a ser um fracasso. Então, a pinça rasgou o aneurisma. Com compressas toda a gente tentou parar a hemorragia, era tarde de mais. O coração do pequeno Miguel não resistiu. Nem mesmo a força da juventude foi mais forte do que o problema. Perplexo, olhou o relógio da sala. Hora do óbito: 17:36h.

Saiu apressado, passou pela mãe que esperava ansiosa por notícias e com um sorriso falso disse que voltaria para falar com ela. Tirou a bata, deu um pontapé na secretária e um soco na parede. A mão ferida sangrava, mas o sangue que ele via era o de Miguel, não estava minimamente preocupado com a mão, não lhe doía, nem sequer a sentia. Perdeu o seu segundo paciente, para ele era o primeiro. O outro, era um velho que não conseguiu curar de um cancro. Dessa vez não pesou tanto. Como se ver alguém morrer-lhe nos braços não fosse suficiente, faltava ainda dizer à mãe que tinha perdido o seu bem mais precioso.

Aproximou-se, pegou-lhe na mão e disse: “Custa muito dizer-lhe isto. O Miguel estava com uma hemorragia interna quando veio cá da primeira vez, provavelmente caiu na escola, bateu com a cabeça e aconteceu. Os sintomas levavam a crer que seria um aneurisma, mas no decorrer da operação e assim que iniciámos a craniotomia tornou-se claro que não era de um aneurisma que se tratava, era uma hemorragia interna que poderia ter sido tratada se tivesse vindo mais cedo.” Cada palavra que cuspia queimava-lhe a língua. A cada frase concluída, uma facada atingia-o no coração. Era culpado da morte da criança, mas só ele e quem estava naquela sala, sabia disso. A imagem do hospital não podia ser manchada, a dele muito menos.

A mulher debruçou-se sobre o corpo vazio do filho e chorou.

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